Até
prova em contrário, todo negro é ladrão
* Por
Urariano Mota
No Recife, a denúncia
de racismo da Casa dos Frios contra o motorista Mário José Ferreira repercute
nas redes sociais. A gerente de uma loja da Casa chamou a polícia para prender
o motorista, porque ele estaria fingindo comprar bolos antes do assalto. A Casa
dos Frios alega que apenas seguiu um procedimento padrão, porque suspeitou que o homem estava armado.
A matéria: Motorista
que acusou Casa dos Frios de racismo grava vídeo sobre o caso
Esse caso me leva a
uma vítima de racismo no Restaurante Leite, no Recife. Está em meu romance “O
filho renegado de Deus”. É ficção, mas como tudo que publico vem do que sei e
vivi. O Leite, hoje, continua a ser o melhor restaurante da cidade. O problema é que, como toda excelência de Pernambuco,
dos doces ao frevo, o Leite possui também uma história de exclusão e violência.
No Leite, negros não entravam a não ser
de farda como empregados. Isso pelo
menos até os anos 50.
Ao trecho do relato
que bem conheço.
“Antes daquela manhã
de 1958, na altura do fim da segunda guerra, Filadelfo se tornara querido entre
os marinheiros norte-americanos que desciam ao Ship Chandler Bar, no Porto do
Recife. E na condição de amigo, ou de conhecido, ou de apenas um guia
útil, conduziu certa vez um oficial da
Marinha made in USA ao que de melhor havia no Recife. Filadelfo então não
sabia, e até a sua última hora jamais soube, que a cidade era dividida em
classes, que as pessoas de cor escura traziam na pele a marca de escravos, nem
muito menos podia adivinhar que as belezas da cidade não eram belezas
universais, desfrutáveis por todo e qualquer habitante. ‘O sol brilha para
todos’, ele dizia em inglês. E por nada saber, e por ver o mundo como imaginava
que o mundo o via, aquela relação entre o homem universal e os objetos
universais, Filadelfo levou o seu igual para o melhor restaurante da cidade, o
mais famoso naqueles anos, o Restaurante Leite. Se houvesse sobrevivido àquele
século, e por alguma estranha química do tempo ganhasse outra consciência,
teria dito em 2013: ‘Ah, o Leite era branco até no nome’. Mas ele era o guia, não? Vale dizer, ele, em
vez de escudo, estava escudado pelo
mariner, ‘um sujeito muito decente, fino, me deu vários presentes’. No entanto,
para quê Filadelfo ousou? Sentado à mesa muito à vontade, estava na sua cidade,
não?, muito rico, pagaria em dólar, ok?, em vez de pedir o menu, perguntou ao
garçom:
– O que vocês têm aqui
pra comer?
Ao que lhe respondeu,
empertigado, limpo e branco o superior vestido de criado de mesa:
– O cavalheiro aqui –
disse, apontando para o gringo – eu atendo. Mas você, não.
– Por quê? É preciso
estar de paletó? Eu estou igual a meu amigo aqui.
– De ordem da
gerência, o restaurante só serve a pessoas educadas.
– Como assim? Como é
que o senhor sabe que eu não sou educado? Eu falo inglês e francês muito bem.
– Você entenda… não é
por mim. Nada contra a sua pessoa. Mas atender você, não.
Então Filadelfo
começou a se exaltar, e a explicar ao oficial o que estava ocorrendo. E o
garçom firme, alto e inamovível:
– Você, não.
- Que absurdo!
Então o criado, aquele
que absorve o espírito da casa, foi ao ponto:
– Saia, por favor. O
gerente diz que negro é fora no Leite.
– O quê?! Como é?
– Eu até deixei você
entrar… saia. O seu amigo nós atendemos.
– Eu sou escuro, mas
sou direito. Não sou qualquer um!
– Não vou perder o
emprego por sua causa. Saia.
Ao que, no tumulto
formado, vem o português, o dono do Leite.
– O que há por aqui?
– Senhor, eu estou
explicando a esse… – e apontava para Filadelfo – a ele que não posso atendê-lo.
Mas ele não quer entender.
– Não tem mais o que
explicar, respondeu o calvo, grosso e rico dono. E pegou no braço de Filadelfo:
– Você retire-se. A minha casa tem um nome. Saia! Fora, ou eu chamo a polícia”.
*
Escritor, jornalista, colaborador do
Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha.
Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife”
e “A mais longa juventude”. Tem inédito
“O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
Coisa de outro dia mesmo. Que vergonha do nosso passado!
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