Joaquim Nabuco, um profeta do Brasil
* Por
Urariano Mota
Lembro que em 2010,
quando se completaram os cem anos da morte de Joaquim Nabuco, muitas
reportagens foram publicadas. Em quase todas, o destaque foi para o homem
liberal, o personagem ilustrado de Quincas, o belo. Nas breves menções às
ideias mais radicais de Nabuco, dava-se um pulo esperto para o conceito de
“homem complexo”.
Copio um trecho
eloquente da Veja:
“As mulheres não
resistiam a Nabuco... (já o abolicionismo) foi uma história de homens tomados
de paixão por uma causa justa e, entre eles, nenhum mais apaixonado do que o
jovem pernambucano de família ilustre, pai, avô e bisavô senadores do Império,
com muito berço e quase nenhum dinheiro, que se tornou o que de mais parecido
poderia existir no século XIX com uma celebridade ao estilo contemporâneo,
aclamado, paparicado e adorado... assumidamente metrossexual, ou, como se dizia
no século XIX, um dândi, o tipo masculino preocupado com a aparência e sensível
a modismos.”
Notem que as coisas
mais graves foram escritas assim, entre amenidades e atualizações que
vulgarizam ou difamam. A paixão de Nabuco pela causa abolicionista como uma
extensão de galã de telenovela se tornou insuportável. Não era justo que ele se
destacasse pelo obscurecimento de homens tão fundamentais quanto Luiz Gama,
André Rebouças, José do Patrocínio, José Mariano. Homens, enfim, talvez menos
belos ou apurados no vestir, mas cheios de amor e entrega absoluta à igualdade
das gentes.
A grandeza de Nabuco
protesta contra anestesias desviantes. Suas ideias, pensamento radical, visão
de futuro, percepção aguda do Brasil até hoje não superada, estão no que
escreveu, na bela e permanente escrita que nos legou. Sem esforço, anotamos:
“A escravidão
permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”.
Quem anda pela zona
rural, quem vê as pacientíssimas filas de doentes sob a chuva nas cidades, sabe
o quanto Nabuco acertou. Ou então aqui:
“Acabar com a
escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão”.
Quem vê a quantidade
de negros ou quase negros presos, quem conhece as matanças nos presídios agora,
sabe. A obra da escravaria não acabou. E mais:
“A emancipação não
significa tão somente o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas
também a eliminação de dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e
o senhor”.
Que ideia definitiva
da dialética entre escravos e senhores! Quanta precisão do que diminui, do que
avilta a pessoa no jogo e conflito entre opressor e oprimido. Em Joaquim Nabuco
se integram em um só corpo a ética e a estética. Mas isso não estava no físico
do Belo Quincas de um metro e oitenta e seis. Está em linhas lapidares em que o
pensamento dá um salto, ilumina como um raio uma situação que todos julgavam
conhecida, mas que se vê concreta pela primeira vez quando escrita. Isso porque
Nabuco foi um homem culto e de gênio, que escrevia no papel as linhas da vida
do Brasil. A divisão estúpida que dá aos ficcionistas o grau único de
escritores, aqui, em Nabuco, comete o seu maior crime. Pois ele gravou esta
profecia, que todo homem é obrigado a carregar:
“O traço todo da vida
é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá
sempre que se cingir sem o saber”.
Desse desertor da sua
casta, classe e raça, como o notou Gilberto Freyre, sabemos hoje que fez o
diagnóstico do que continua urgente, 107 anos depois da sua morte. Pois
continuamos sem reforma agrária e sem o fim da escravidão nos campos e nas
cidades. Para esse verdadeiro Quincas, nada mais próprio que o seu pedido ao
médico, no último leito:
“Doutor, pareço estar
perdendo a consciência... Tudo, menos isso!”
Sorte nossa que ele
não a perdeu. A sua consciência ficou nas linhas, no traço da criança de oito
anos que nunca esqueceu um escravo fugido no engenho Massangana. Mais que belo,
Quincas ficou eterno.
* Trecho do Dicionário
Amoroso do Recife.
*
Escritor, jornalista, colaborador do
Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha.
Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife”
e “A mais longa juventude”. Tem inédito
“O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
Dói em quem lê, e, especialmente em quem descende de pessoas escravizadas num país como o Brasil.
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