sábado, 22 de outubro de 2016

O jornal


* Por Alcindo Guanabara


O prelo completou a cruz. A moral nova, a cuja influência a humanidade renasce, não se propaga, não se infiltra, não se dissemina, não vence mares e montanhas, senão por efeito da imprensa. É graças a ela que o pensamento se liberta, que o espírito humano se emancipa de preconceitos, que a tradição se escoima e se seleciona, que a prepotência dogmática se atenua e que o livre exame surge, como alicerce e fundamento de uma nova moral social. O cristianismo transformou a humanidade em vista de uma vida futura; a imprensa permitiu que ela usasse dessa transformação, a benefício da vida terrena. A luz que a Alemanha assim acendeu, iluminou todos os desvãos do passado e ilumina todos os arcanos do futuro; suprimiu o tempo e a distância; aproximou as terras e as gentes; e ardendo sem se consumir, estimula a ciência, incita a arte, protege e resguarda as religiões e é o paladium da liberdade! Não foi sem razão que o nosso romântico Castro Alves declamou, um dia, que, quando ela surgiu,

“... os pólos se abraçaram!

O Norte ouviu, chorando, o soluçar do Sul!”

É à sua sombra fecunda que os agrupamentos humanos crescem e se desenvolvem, adquirindo a consciência, a dignidade e a liberdade, que os elevam à categoria de nações. Vereis, na história, a força formidável desse instrumento de luta. Ele cria, defende, impõe, preserva a liberdade de consciência. Livro, dissemina ideias, divulga noções, dispersa conhecimentos, dilata os horizontes do espírito, gera a fome de liberdade. Panfleto, destila fel e veneno, fulmina a tirania com o sarcasmo, traspassa, como um florete, o corpo dos déspotas. É, porém, o jornal e a expressão completa do seu triunfo. O panfleto, clandestino e anônimo, é ainda uma arma de rebelião; o jornal só vive numa atmosfera de liberdade. Mesmo nos países ainda flagelados pelo fogo interior, em cujas crostas se não fez a consolidação dos regímens de liberdade, as erupções da tirania se acentuam pela perseguição, pela suspensão, pela eliminação dos jornais livres. Também se velam as faces dos deuses, para se praticarem os suplícios cruentos! Podem, porém, desencadear-se as borrascas políticas; a livre imprensa cede, como os salgueiros, à violência do tufão, mas não se aniquila: entra, nos dias límpidos que se seguem, a lutar por fazer cada vez mais raros os cataclismos. A liberdade é árvore de trato tão difícil, que muitos são chamados a sofrer por seu cultivo, antes que se faça frondosa. Onde, porém, foi possível o aparecimento de um livre jornal, em que alguém escreva por sua própria inspiração pessoal, aí podem os povos solenizar uma vitória de sua força e averbar uma esperança de seu predomínio.

Nem é preciso que esse jornal se faça uma catapulta, ou se afie como uma adaga. A liberdade não se assinala nem se afirma pelo combate ou pela paixão: existe, porque existe. Na serenidade das páginas do jornal que mais alheio se mostre e seja às contendas e disputas de cunho político, a liberdade resplandece, no registro diário dos fatos e das coisas, na divulgação do pensamento humano, na disseminação das idéias de filosofia e dos fatos da ciência, que as gerações que passaram nos têm legado e constituem todo o nosso patrimônio de civilização. Assim, o jornal é um centro de onde irradia a força geradora do progresso social; é um elemento de conservação, rememorando diariamente a síntese da vida humana; é uma fonte de esperança, despertando nos espíritos e nos corações o estímulo para o trabalho e para a luta por um futuro melhor.

(Pangloss, O País, de 3-11-1904. Incluído em Discursos fora da Câmara, 1911).


* Jornalista e político, membro da Academia Brasileira de Letras.

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