quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Manhã


* Por Mara Narciso


Amanhece. Os passarinhos cantam como se já fosse primavera, que de fato é. São livres e mostram-se à vontade, parecendo que alguma lei proíbe que sejam caçados, e que, estando num país sério, essas leis estejam valendo, e sobre esses animais não haja ameaça. Voam baixinho, junto às casas, quase comem na mão das pessoas. Muitas espécies que tinham desaparecido voltaram. Nem dá para imaginar que há meio século meninos saíam para caçar passarinhos com suas espingardas de chumbo e voltavam com um monte de aves mortas, em penca, amarradas pelos pés. Matavam por matar ou para calá-las (?). Muitas nem tinham carne, e eram descartadas. Tempos bons, de um lado, e tristíssimos de outro. Que os erros possam ensinar algo.

Os passarinhos, pelo fato de ter a imensidão do céu por moradia, possuem tudo e não se apegam a nada. Os pardais, os mais comuns nas cidades, escolhem uma árvore qualquer ou um arbusto numa varanda, ou mesmo um espaço no telhado e sentem que ali é o seu lar. Por alguns dias investem força e tempo na construção do seu ninho. Findo, agasalham-se, botam os ovinhos, chocam em 12 dias, esperam nascer os filhotinhos, os alimentam, e estes, em 10 dias criam penas, crescem, aprendem a voar e desaparecem, não deixando marcas e nem laços. Desapegados bichinhos. Que possam, com a simplicidade, ensinar o desapego com coisas, com gente e com a vida. Caso não existisse tanto agarramento, haveria menos medo e insegurança.

A parte mais bela do dia é a manhã, quando se manifesta maior força e energia. Coisas do ritmo circadiano dos hormônios. No entanto, desde o advento da internet os jovens e os não tão jovens passaram a se deitar cada vez mais tarde e a acordar ao meio dia. São notívagos. A qualquer hora, a vida pode ser boa, mas de manhã, parece mais bonita. Acordar, abrir a janela e receber no rosto uma lufada de vento com cheiro de mato não é tudo que se quer da vida, mas é bom. A tecnologia é tão onipresente, que falar do céu, do sol e do vento é ser romântico, é quase ter espírito de poeta.

Na semana da criança uma propaganda das Lojas Habib’s mostra pais e mães com seus filhos, chegando a uma clínica para algo que seria um teste psicológico. Cada dupla chega num horário, portanto não se encontram. Ao entrar seus celulares são confiscados. Não tem som nem televisão, mas tem livros, cadernos, lápis de cor, tinta, telefone de lata, brinquedos de madeira, futebol de mesa, de acordo com a idade da criança. A espera é longa, propositalmente, assim, cada pai, mãe e criança começa a pegar coisas para brincar. Relaxados, inventam brincadeiras, divertem-se. Tudo é filmado. Quando finalmente são chamados para o teste psicológico, na verdade o teste já está feito. A filmagem da espera/interação/diversão é mostrada à dupla, que ao se ver na tela, vai pouco a pouco mostrando surpresa, contentamento, alegria e um quase choro. E a moral da história: qual é o melhor presente? O convívio sem interferência tecnológica.

Os avanços são bem-vindos e é preciso abraçá-los. Nem é bom falar que o exagero seria ruim, pois o que é muito para uns, pode não ser demais para outros. Então, eu sou eu e você é você. Eu o aceito, e você me aceita? Eu não sou seu amigo apenas quando concorda comigo. Samba de uma nota só? Que seja. Divergir é normal, e usar o celular até debaixo do chuveiro seria exagero? Caso esteja dependente a este ponto e se de fato necessita disso, talvez esteja precisando de afeto ou de ouvir o canto dos passarinhos pela manhã.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


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