quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Foto 1 – Paulo Sérgio Schneider - Ponta Aguda – Enchente de 1911
Foto 2 – Paulo Sérgio Schneider - Ponta Aguda – Enchente de 2011


Ponta Aguda

* Por Urda Alice Klueger


Eu já devia ter pelo menos 15 anos, pois foi naquela época em que meus pais já moravam na Praia Grande do Itapocoroy/Penha/SC, o que já faz, portanto, mais de 40 anos. Vinha de lá para Blumenau no ônibus da Brusquense, que era a empresa de ônibus que fazia tal trajeto então, e que já faz muito tempo que não existe mais. Sou capaz de sentir, neste momento, o cheiro do ônibus da Brusquense, seu sacolejar, o ranger das suas molas, o gosto dos chicletes Ploc de morango que eu costumava mascar para não enjoar – só que naquele dia a conversa estava tão interessante que eu não enjoei.

No primeiro banco, estava sentada junto a uma senhora que conversava jovialmente e me dava atenção como se eu fosse uma interessante adulta. No meu olhar adolescente era uma senhora velha, embora sua conversa tão agradável – é que quando adolescentes, às vezes, pensamos que todos os velhos são chatos ou tristes. Em todo o caso, agora, penso que tinha 15 anos em 1967, época em que já fazia 56 anos desde a enchente de 1911. Como aquela senhora deveria já ter uns 10 anos em 1911, então, lá naquele dia do ônibus da Brusquense, ela teria pelo menos 66 anos, o que é uma idade avançada quando mal se saiu da infância, mas que hoje se me parece ainda tempo de tão grande juventude, principalmente quando penso que, se tiver sorte, logo terei chegado lá, e talvez, então, continue sentindo o que sinto hoje: que sou absolutamente jovem, mas que levo um susto danado quando olho para o espelho e vejo a mulher velha que me espia de lá!

Mas voltemos ao velho ônibus da Brusquense e àquela conversa onde um adulto de verdade me levava a sério – pelo tempo que passou, aquela senhora já faleceu há muito, e talvez somente sobreviva na memória dos seus descendentes e na minha. Meu interesse por História foi sempre muito aguçado, e jamais esqueci o que ela me contou naquele dia.

Aquela senhora era uma menina em 1911, e morava num lugar que se chamava Ponta Aguda, que é o mesmo lugar que hoje tem tal nome, em Blumenau.
- Sabe por que o nome Ponta Aguda? – explicou-me ela. – É porque havia um morro muito pontudo, pontiagudo, que a enchente de 1911 levou. Ali eram as terras dos meus pais, e tínhamos lavoura e bananeiras plantadas nesse morro pontudo. Quando o rio subiu, subiu, meu pai se lembrou de que havia esquecido uma enxada na encosta desse morro, e tendo em vista que a água ameaçava atingir o mesmo, mandou que eu fosse correndo buscar a ferramenta.

Eu já não lembro se ela conseguiu buscar a enxada ou não – lembro como me contou que estava muito próxima dessa ponta aguda quando tudo desmoronou... e o tal morro pontudo foi-se rio abaixo. Foi uma coisa assustadora, e penso que só depois que vivi a Catástrofe das Águas de 2008 foi que pude me identificar direito com o que sentiu aquela menina lá do passado quando um morro inteiro foi embora diante dos seus olhos incrédulos.
- No lugar, restou o que hoje é a Prainha – explicou-me ela, e nunca duvidei do que ela disse.

Ao longo da minha vida já vi a Prainha, em Blumenau, tomar diversos formatos depois de grandes enchentes, como o de quase um Saara de areia branca que aterrou tudo em 1983. Por que não teria sido ali, no passado, um morro pontudo? Por que teria me mentido aquela senhora tão simpática cujo nome eu deixei fugir no tempo, mas cuja história nunca esqueci? Era tão vívida a lembrança daquilo tudo, dentro dela...

Dentro de mim ficou explicado porque a Ponta Aguda se chama Ponta Aguda. Achei que deveria contar.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e quatro livros (o 24º lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).



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