segunda-feira, 4 de abril de 2016

Rota de colisão

* Por Daniel Santos

Havia sol, nenhuma dívida a saldar, e o exame de sangue lhe  atestara excelente saúde: tudo a seu favor, mas, ainda assim, sentia-se  menor, insuficiente para enfrentar o cotidiano ensebado de sempre.

Porque ele, sim, transformara-se, e muito, nos últimos tempos. Além de dentes e cabelos, perdera hormônios e ilusões! Lá se fora a garra, a agressividade dos verdes anos, o irresistível poder de convencimento ...

E de tal forma a ruína o abatera que despertou certa manhã sem coragem de sair ao trabalho. Tudo intimidava e constrangia. Além disso, um ruído lá fora quase o aterrorizava – um ruído de rotação, parecia.

Antes que experimentasse o pânico, afastou as cortinas e viu: bem diante de seus olhos, enorme, redondo e azul como nos mapas, o globo terrestre evoluía avassalador em rota de colisão contra sua janela!

Não houve choque, no entanto. Mais grave que a perplexidade desse homem, a realidade se impunha. Anônimo e sujeitado, ainda menor do que antes, vestiu o paletó e saiu para mais uma jornada sem glórias.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
  

Um comentário:

  1. A motivação em forma de possível catástrofe. Somos seres bem estranhos.

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