Paisagem de interior II
*Por Pablo Uchoa
Dona Germana e
seu Antonio – que Deus os tenha – se impacientaram, e obrigaram o prefeito da
pequena cidade de interior a inaugurar antes do tempo a menina dos olhos da
Secretaria de Obras Públicas.
O assessor de
comunicação garantiu que a cerimônia feita às pressas ainda assim teria impacto
positivo na avaliação do distinto eleitorado nas eleições de outubro.
Não é nada, não
é nada, desconversou o prefeito, mas todo o secretariado percebeu o desconforto
do chefe ao cortar a fita vermelha sobre um palco montado nos fundos do novo
cemitério, o único pedaço de muro que já estava pintado de branco.
Depois o padre
benzeu os ataúdes, e o cortejo deu a volta no quarteirão, entrando com os dois
primeiros moradores do campo-santo – sorte tiveram de partir juntos – pelo
portal da frente, ainda em argamassa.
O buraco de
seis palmos já estava pronto, não carecia de reformas, disse Manéu, o coveiro. Dona Germana e seu Antonio eram até
bem-vindos de adubar a terra, não vinha chovendo ultimamente na pequena cidade
de interior.
As viúvas
amigas da finada, bolsa e véu negros, lamentavam a partida em dobro, mas se
conformavam pensando que já tinham programa para dali a uma semana, quando o
carro de som da Casa Funerária Bom Jesus passasse anunciando a missa de Sétimo
Dia.
Em respeito,
Raimundo Filho ficaria de pé e deixaria sobre a mesa da mercearia o copo de
vinho com limão e gelo, que de uns tempos para cá andava se metendo a tomar. Zé
Bilau mangaria das formalidades do amigo:
- Raimundim
gosta do vinho do prefeito, eu só tomo vinho rasgueira!
Zidinha achava
que Raimundim estava mesmo era virando um chato com aquele tal de firulas que
aprendera no Exército.
Mas a mãe dela,
dona Francisca, estava convencida de que a vida na tropa aumentara a cultura do
moço. A memória não ajudava, porém a velha estava certa de que havia sonhado
com a promoção do rapaz a cabo, em apenas questão de meses.
- Raimundim é
um bocó – dizia a filha.
Para desgosto
da mãe, que advertia, não ia durar para sempre, tome jeito enquanto é tempo.
Dona Germana e Seu Antonio – que Deus os tenha – já tinham até inaugurado o
cemitério novo.
Raimundo Filho
era um dos mais dignos da nova geração da pequena cidade do interior, pensava
dona Francisca.
- É um bocó – desafiava Zidinha. A mãe pedia
silêncio.
- Respeito o
carro que vai passando, diaba!
Do outro lado
da rua, na mercearia, Raimundim se levantava e deixava o copo de vinho com
gelão e limão em cima da mesa.
O mendigo nem
se dava ao trabalho de olhar por cima do pedaço de trapo que servia de
cobertor.
O vira-lata,
pulguento, já tinha perdido o interesse em correr atrás daquela carroça que não
andava sequer a vinte quilômetros por hora.
Na pequena
cidade de interior, o carro de som da funerária Bom Jesus desperta mais
interesse que o Carnaval.
·
Esta crônica faz parte da série “Paisagem de interior”.
(*) Cronista
e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute
for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do
livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003),
menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.
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