Miguel de Cervantes e o Brasil
* Por
Urariano Mota
Neste sábado,
completam-se 400 anos do falecimento do gênio Miguel de Cervantes. É claro que só no sentido do corpo físico
dizemos que falece um artista máximo da humanidade. O fundamental é que no
mundo inteiro hoje se lembra a continuação viva de Cervantes em sua obra-prima,
o Dom Quixote. Sem dúvida, o maior e melhor romance já escrito, digno de ser
prova da existência do homem, quando mais nada existir.
Perdoem o que pode
parecer uma orquestra de clarins. Se assim parece, compreendam. Um clássico da
altura de Miguel de Cervantes é sempre moderno, para nós ele acaba de escrever
agora mesmo, nesta hora. Assim, penso não ser um abuso a relação que estabeleço
entre o Dom Quixote e o Brasil destes dias, quando uma presidenta honesta sofre
impeachment comandado por um desonesto notório. Se não, observem na primeira
parte da obra:
“ - Seja Vossa Mercê
servido, meu Senhor Dom Quixote, de me dar o governo da ilha que acabou de
ganhar nesta rigorosa pendência; pois, por grande que seja, me sinto com forças
de a saber governar, tal e tão bem como qualquer outro que haja governado ilhas
no mundo”.
Ao que Dom Quixote
respondeu:
“- Sabei, irmão
Sancho, que esta aventura e outras semelhantes não são aventuras de ilhas, mas
de encruzilhadas, nas quais não se ganha outra coisa senão uma cabeça quebrada,
ou uma orelha de menos. Tende paciência, que outras aventuras se nos
oferecerão, em que eu vos possa não só fazer governador, como até mesmo coisa
melhor”.
Nem é preciso
estabelecer uma relação primária entre a ilha prometida a Sancho Pança, que só
existia na imaginação do cavaleiro Dom Quixote, e o Brasil, um continente maior
que a fantasia mais delirante. Importa mais o sentido de que o agir político
mais de uma vez nos deixa todos em situação de encruzilhadas, nas quais se
ganham cabeças quebradas, orelhas de menos e traições a mais. Ao mesmo tempo,
como acompanhar nosso Brasil, a não ser com a riqueza da literatura, os
discursos e votos em nome da honestidade proferidos por corruptos?
“As histórias
inventadas tanto têm de boas e deleitosas quanto mais se aproximam da verdade
ou de sua semelhança; e as verídicas, quanto mais verdadeiras, melhores são”.
Assim falou o augusto cavaleiro na pena de Cervantes. Que belo pensamento e
lição literária, que alcança todas as falsificações até hoje, no Congresso e
nos livros. As histórias inventadas são boas quanto mais próximas forem da
verdade. Quem escreverá sobre estes dias?
Então cheguemos ao
fim:
“- Ai! - respondeu
Sancho Pança, chorando - não morra Vossa Mercê, senhor meu amo, mas tome o meu
conselho e viva muitos anos, porque a maior loucura que pode fazer um homem
nesta vida é deixar-se morrer sem mais nem mais, sem ninguém nos matar, nem
darem cabo de nós outras mãos que não sejam as da melancolia .... Vossa Mercê
há-de ter visto nos seus livros de cavalarias ser coisa ordinária derribarem-se
os cavaleiros uns aos outros, e o que é hoje vencido ser vencedor amanhã.”
Em seu autorretrato,
escreveu um dia o gênio:
“Este, que aqui vedes,
boca pequena, dentes nem de mais nem de menos, porque são apenas seis e, ainda
assim, em má condição, muito mal dispostos, pois não têm correspondência uns
com os outros... que se chama Miguel de Cervantes Saavedra, foi soldado durante
muitos anos, escravo por cinco anos e meio e foi aí que aprendeu a ter
paciência na adversidade.”
Grato, Cervantes. Com
paciência, a dor de hoje também vai passar.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Antônio Anastasia, ex-governador de Minas e amigo íntimo de Aécio Neves, pedalou mais do que Dilma. Quando instado a responder sobre como se sentia em julgar alguém que tinha cometido os mesmos erros que ele, o relator falou que quem estava em julgamento não era ele, e sim Dilma Rousseff. Mais uma vez moralistas sem moral fazem seu teatro incoerente.
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