Antonio Conselheiro
* Por
Dantas Barreto
Toda a população
baiana compreendida nos limites da estrada de ferro que une o litoral à cidade
do Juazeiro, no alto sertão, e os Estados de Pernambuco e Sergipe, estava
seriamente apreensiva pela gente de todas as condições que se encontravam nos
muros de Canudos, para formarem uma existência a seu modo, sem obrigações com
as autoridades constituídas daquela região brasileira e sem outra dependência
que não fosse a do supremo árbitro da sua sorte, o legendário Antônio
Conselheiro. (1)
Um drama de íntima
urdidura, dos que se criam na veemência de sentimentos estragados e cujo
desfecho produz a estupefação mais viva na vítima que atinge, fez desse homem
laborioso e austero um grande desgraçado, para quem desde logo morreram as
alegrias da vida.
Traído cruelmente pela
indigna esposa, que adorava com todo o entusiasmo do seu coração abrasado,
cedeu ao peso do desastre, sucumbiu à injúria esmagadora, e nem sequer buscou
na vingança imediata um desafogo a tamanha desventura!
E desde que se
apercebeu de semelhante catástrofe, e desde que a fatalidade arremessara-lhe as
faces o sopro frio do desprezo, a gargalhada cáustica de quantos o conheceram no
pobre meio onde se encontrara feliz até esse dia sinistro, o mísero fugiu de
todos, isolou-se do mundo, não como os antigos monges, no silêncio dos
claustros misteriosos, nos medievos recolhimentos em que se depuravam os
grandes crimes e os grandes pecados, mas pelos recantos escusos, pelos silvados
intérminos das charnecas abrasadas, tendo como sócios do seu errar incessante
os animais sanguinários das florestas virgens e as aves medrosas que, ao vê-lo
no assombro do seu aspecto desolado, batiam as asas de plumagens leves e voavam
para muito longe, espavoridas, até se ocultarem nas franças dos arvoredos
seculares. E quanto mais se recordava dos avoengos que a tradição envolvia de
façanhas temerárias, sempre vitoriosos nas lutas em que se empenhavam com adversários
rancorosos dessas paragens queridas, mais se abismava na solidão e na mágoa,
como se fosse um assassino execrável, como se expiasse um crime hediondo!
Depois, atordoado com
a quietação do deserto, esmagado pela brutalidade da natureza bravia, salvando
montanhas fragosas para lançar-se nos áridos plainos do norte, bebendo como o
jaguar as águas estagnadas da terra inculta, pedindo esmolas para não morrer de
fome, dormindo pelas cavernas abandonadas dos tigres carniceiros, transferiu-se
do Ceará para o sertão da Bahia e aí peregrinou de aldeia em vila, fazendo-se
notar em pontos diferentes, quase ao mesmo tempo; anoitecendo em Cumbe e
amanhecendo em Monte Santo ou Massacará, calculadamente, com enigmático
parecer, no seu invólucro de humilde religioso, para chamar a atenção dos
sertanejos impressionáveis, em cujo espírito era preciso insinuar-se até o seu
domínio completo. E foi assim que, depois de aturado e longo trabalho
doutrinário, arregimentou uma clientela à sua feição, intransigente e disciplinada
como os sectários ortodoxos de todas as religiões mais ou menos sistematizadas.
E uma vez convencido do seu triunfo sobre as legiões de fanáticos ao serviço da
sua causa dominadora, sentiu-se aparelhado para a luta; encastelou-se nas
muralhas e nos contrafortes de Canudos e, de armas ao ombro, não duvidou mais
da sua ascendência territorial no Estado.
Avisado desse perigo
latente, o governo da Bahia, apesar das veleidades de um poder militar que de
fato não possuía, pediu a intervenção do governo federal, que mandou a Canudos
duas diligências reforçadas, a fim de chamar à ordem os elementos subversivos
do Conselheiro, mas nenhum desses contingentes logrou chegar à praça rebelde,
cujos defensores, em vez de se amedrontarem, iam ao encontro dos adversários,
fora, nos desfiladeiros estreitos, e aí travavam combate, fazendo-os retroceder
com as fileiras vazias de algumas dezenas de soldados, por mortes e ferimentos.
A última dessas
partidas compunha-se de uns quinhentos homens, com duas bocas de fogo, tudo sob
o comando de um inteligente e cauteloso oficial superior, de modo que o seu
insucesso deu muito que falar na imprensa do norte central, onde tudo se
alarmara com justificada razão. E só então foi que o governo da República,
sentindo devidamente o mal-estar da população baiana, viu-se na contingência de
reagir com elementos poderosos, para sufocar a anarquia de Canudos,
determinando a partida imediata de uma expedição regular sobre o território
ameaçado, nos longínquos sertões do heroico Estado.
(1)Antonio Vicente
Mendes Maciel procedia de uma antiga família de Quixeramobim, no Estado do
Ceará, famosa aliás pelo valor com que enfrentara, em época remota, as coortes
de adversários poderosos que pretendiam exterminá-la.
Acidentes de guerra
(operações de Canudos), 1905.
*
Marechal-de-exército, historiador militar, jornalista, romancista e teatrólogo,
membro da Academia Brasileira de Letras.
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