Sagrado
profano
* Por Laís de
Castro
É esquisito
mesmo , mas
eu posso contar
como começou e como
acabou esta história que teve começo ,
meio e fim .
Bem ao contrário dos filmes
americanos e das novelas
brasileiras, essa parece que não teve um final de soltar foguetes . Eu gosto de histórias
de verdade que
não têm melaço ,
não têm rapadura ,
não têm glicose ,
sacarose e os cambose, e nem favos de mel . Não são açucaradas, quero dizer ,
não têm aquela amolação de brincar de casinha, de amor
sem fim
que não
duram e que qualquer
dor de dente
pode acabar com
uma paixão destas em
dez minutos ,
um tendo que
abrir mão da praia para levar
a outra ao
dentista e ficando furibundo
de raiva que
lá fora
está o maior sol .
Vou contar , então desde o começo .
A menina ,
que nasceu com
Síndrome de Down, veja só
como a denominação
do mal já
está politicamente correta , morava ao lado de
uma discoteca gay
que tinha
shows metidos
a hollywoodianos, com direito a escadaria
e transformistas equilibrados em altíssimas sandálias
plataforma , roupa
de Carmen Miranda, dublando a Maddona. Maddona não ,
naquele tempo ela
nem existia, a dublagem
era da Lisa
Minelli mesmo , New York, New York, que veado adora
dublar mulher .
Bem que eles poderiam dublar o
Frank Sinatra em New York , New York, mas o que ? Nem pensar ! Acho que também tinha dublagem da Barbra
Streisand e de outras cantoras, mas confesso que
sou muito ruim
com músicas
americanas, tudo que
eu ouço acho igual ,
com exceção
daquelas maravilhas de New Orleans.
Estive naquela discoteca
uma meia dúzia
de vezes e, assim ,
conheci a menina a quem
vou chamar Maria porque
não lembro o nome
dela, que dançava, dançava e dançava a noite inteira sem descanso .
Girava o corpo desengonçado
e olhava as luzes e sorria, aquele sorriso inexpressivo (nós
sabemos que é assim ,
caruncho ) com
a alegria dos inocentes .
Na primeira
vez que
passou na porta da discoteca ,
Maria parou e ficou vidrada, olhando para dentro , ansiosa ,
balançando para
frente e para
trás , no ritmo ,
como nunca
antes . A mãe ,
que vamos chamar
D. Sonia , tomara
que o nome
não coincida com
o verdadeiro há muito
esquecido, com um
sorriso de acabar
com festa
de reveillon em navio
de tão triste ,
tomou um susto .
Aquela menina que
vivia há 20 anos prostrada, olhos baixos ,
desolada, apática , jogada
feito uma boneca
dorminhoca , parecia, ali naquela porta ,
acordar de um
longo sono .
Assim , mesmo
tendo uma bolsa de parcos
recursos , resolveu pagar
o ingresso para
as duas. Pequena , tímida
e simples , aquela mater-dolorosa,
que nunca
tinha visto
um veado
de perto e agora
estava no meio de mais
de 200, era o susto
personificado, parecia uma estátua de bronze enquanto
a filha , pela
primeira vez
na vida, exibia um brilho
nos olhos
e quase ria ,
enquanto ia para
pista de dança
e começava, sozinha , a dançar .
Entre o pavor
e a cerimônia , entre
a alegria de ver
a filha sorrir
e dançar e o pejo
que sentia em
estar ali , Dona Sonia
foi se chegando devagar , como quem não quer chegar (nós sabemos como
isso funciona, caruncho )
e escolheu, para encostar
o corpo hirto ,
uma cadeira num cantinho sob
o palco , de onde
podia vigiar a menina
e, ao mesmo
tempo , esconder-se para
encarar a encalistração e o retraimento que a faziam suar dos pés à cabeça . Tonta , o ouvido
zunindo de medo , o que
eu estou fazendo aqui ,
pensava, apavorada, meu marido vai me matar , que coisa mais louca esses homens que só conversam com
outros homens ,
encafifava, são veados ,
mas são
tão bonitos .
Ali , escondida, ela
derramava lágrimas
sofridas e afortunadas, lágrimas de mãe , ao ver a filha , que durante
duas décadas havia caminhado inerte diante
da vida , sorrindo e girando, feliz como um pássaro que se solta da
gaiola e voa, ainda
que baixo ,
mas voa.
Assim se passou a primeira noite. Dona Sonia não conseguiu tirar Maria da pista até que a
música terminasse, as luzes se apagassem e tudo ficasse, de novo, triste como
túmulo de criança. Exausta, ela contou tudo ao marido que surpreendentemente
entendeu e não fez nenhuma referência ao fato daquilo ser uma boite, ainda mais
uma boite gay e, ainda mais misteriosamente, parecia também feliz com o que
havia acontecido. Se a menina gostou você pode levar ela uma duas vezes por
semana que mais que isso a gente não pode gastar, mas se ela fica feliz lá
dentro... Aquela filha única era o doloroso xodó de ambos, era sua amargura,
sua dor, sua cruz, pesada como chumbo que curva os ombros e destrói a vontade
de viver, enfim.
Os homens e algumas mulheres, bem
vestidos, bem postos na vida, que agitavam os corpos malhados naquela pista de
danças, de início, fingiam não ver o que estava acontecendo, como se a menina
fosse de vidro. Depois, foram se acostumando e não viam mesmo. Ela era mais um
fato daquele contexto e assim foi aceita, com uma indefectível paciência no
início e depois com um acachapante querer-bem. Sem querer ser piegas, que eu já
disse lá atrás, tenho ódio de frase de novela, todos se apaixonaram por aquela
presença comovente e real, se um dia ela faltava porque tinha um gripe ou
porque a mãe estivesse com gripe, parecia que havia uma lacuna ali, no lugar da
menina ficava pairando no ar uma espécie de apreensão...
Não vou ficar entrando em detalhes
porque esses detalhes só machucam o coração dos mais sensíveis, a mãe chorando
porque tinha descoberto um motivo de alegria para a filha, o pai juntando os
trocados na carteira, para elas voltarem à boite, Maria pulando de felicidade e
correndo para debaixo das luzes negras e coloridas, para aquela arena simples e
pura, que os ascetas e falsos moralistas chamariam de antro de perdição, nós
sabemos, caruncho, que não é bem isso. Aquele lugar não era uma furna de
pecado, não. Há trinta anos atrás, aquilo era quase que um convento... Não, não
é isso. Nem tudo de antigamente é melhor do que hoje, não. Mas eu posso
garantir, porque fui testemunha ocular, que as pessoas iam lá para se divertir,
conhecer-se e assistir aos shows. Era um lugar de lazer, sem perversão, nem dó,
nem drama.
Pois bem, para encurtar essa conversa
que já vai longa, eu vou dizer que essa menina nunca mais deixou de dançar,
todas as noites, eu disse todas as noites e a mãe, insone, nunca mais dormiu,
ficava ali sentada na cadeira dura, esperando o sol. No entanto, o que
aconteceu (e aqui entra o sobrenatural, o belo, e eu que não sou dada a estas
bobagens, nesse caso devo me render aos efeitos não racionais da bondade
humana) foi que depois de algumas semanas, a menina já não dançava sozinha.
Todos os rapazes e senhores que ali dançavam e, vou repetir, algumas mulheres
também, passavam por Maria, davam um beijo, pegavam sua mão e giravam,
brincavam com ela, alegravam ainda mais seu olhar com um gesto de carinho, um
abraço, um toque cuidadoso.
Dona Sonia
arrumou ali 200 amigos. A dona da discoteca, sabendo de suas dificuldades, nunca
mais cobrou a sua entrada e nem a da filha, que tinham lugar de honra como se
vips fossem e eram, já que o tinham conquistado o bem querer universal dos
freqüentadores. E eu posso falar de cátedra, gays são exigentes como
compradores de relógios suíços, carros alemães ou vinhos franceses. Ali, haviam
deixado sua alma derreter de compaixão, como sorvete no forno.
Vou contar outra coisa, um dia Dona Sonia teve uma gripe e três convivas assíduos da
boite foram buscar Maria para que ela
não perdesse a noite de dança. Depois, levaram a menina para casa, como se irmã
deles fosse, protegida, serena, exausta, sonolenta. Senhores, eu vi.
Poucas vezes estive naquela discoteca,
porque nunca fui dada a excesso de decibéis, mas tive grandes amigos que eram
fanáticos pelo lugar. Depois, contudo, do que vi e do que soube que acontecia
ali, passei a considerá-la um local sagrado (nós sabemos como é, caruncho).
Todas as noites, naquele altar, Maria e
Dona Sonia tinham seus momentos de
bem-aventurança: a menina, que na rua e na escola ninguém, praticamente,
enxergava, e não venham me dizer que as pessoas dão mais do que 30 segundos de
atenção para meninas como ela, agora era objeto das delicadezas e dos afagos
generosos de todos ali presentes. Antes praticamente negligenciada por
estranhos feito um cão sarnento, agora era amada, querida e alvo de carinho oi
gatinha chegou tarde hoje, dizia um, oi Maria, tá tudo bem, oi garota, que
roupa bonita, tá de blusa nova, cortou o cabelo ficou linda... Feliz, na sua
inconsciência, ela agradecia com seu dançar desajeitado e seu sorriso pastoso e
flácido. Muito aqui entre nós: ela não sabia que todos aqueles homens não
tinham, exatamente, predileção por mulheres. Portanto, sentia-se cortejada.
Dona Sonia , vendo a filha contente e
bem tratada, todas as noites deixava escapar algumas lágrimas, agora só de
alegria. Ela, sim, sabia que ali a menina não corria nenhum risco.
Alguns anos depois do começo dessa
narrativa, no aniversário de um grande amigo, que freqüentava a discoteca, boa
noite, boa noite, parabéns a você nesta data querida, tive uma surpreendente
emoção: convidadas de honra, tratadas com amor e respeito, lá estavam Maria e
Dona Sonia . Lembra delas, claro,
lembro, prazer em revê-las, disse correndo, depressa, bobona, comovida, me
tranquei no banheiro e chorei cântaros. Somos convidadas para aniversários toda
semana, me contaria depois a mãe, orgulhosa, apaixonada pelos novos amigos, eu
já faço até os bolos das festas para ganhar um pouco mais. Maria não falava.
Apenas, o rosto lavado de satisfação, a alegria exposta sem pudores (nós
sabemos, caruncho), comia brigadeiros, como uma criança de 8 anos. A esta
altura já tinha uns 28 para 30 anos.
Não posso dizer quanto tempo durou essa
fortuna, que não há mal que sempre dure e nem bem que nunca se acabe. Eu me
afastei e, anos depois, passei em frente do que era antes aquela boite gay: em
seu lugar, havia uma igreja. Por onde andarão Maria e Dona Sonia , se é que a mãe está viva, dizem que o maior
medo de mães assim é o de morrer antes das filhas, que ficam abandonadas,
lembrei, naquela tarde escura. Em que discoteca dançará, hoje, a eterna menina
que agora deve ser uma senhora na faixa dos cinqüenta? Por onde andarão aqueles
que aprenderam a amá-las com generosidade e respeito? Meu amigo, aquele do
aniversário, está morto, não pode mais me dar notícias das duas.
Não quero ditar regras e nem sair por
aí fazendo discursos pálidos como freiras assustadas e inúteis como reis e
rainhas, mas não sei se agora, acolhendo uma casa de orações, aquele espaço
seria mais divino do que a discoteca havia sido. Não sei se as pessoas que para
ali se encaminham hoje, mesmo lendo textos ditos religiosos, levem consigo a
leveza de alma dos que iam lá antes, dançar e tomar cerveja. Tão generosos que
receberam Maria e sua mãe de corações, mentes e braços abertos e abriram, da
mesma forma, suas casas para as duas. Tão doces que embalavam Maria, com a
nobreza de sua atenção e carinho fraterno. Tão magnânimos que, a mil
quilômetros de qualquer preconceito, amaram aquela menina como a si mesmos.
Não apostaria que os homens e as poucas
mulheres que freqüentavam aquela arena de luzes e música, fossem menos sagrados
do que os que vieram depois, com a suposta igreja. Nós sabemos, caruncho.
* Jornalista, atua no grupo
Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda,
8 anos na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi
diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora
do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano, entre
outros tantos.
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