Personagem que vive conflito entre
culturas antagônicas
A escritora norte-americana Pearl Sydenstricker Buck (cujo
nome de solteira era Pearl Comfort Sydenstricker), que viveu grande parte da
sua vida – toda a infância e adolescência e alguns anos da maturidade – na China,
produziu várias obras-primas literárias, a maioria tendo esse país por foco. De
todos os seus mais de 110 livros, muitos de contos e de novelas, o meu
predileto é justamente seu romance de estréia, publicado em 1930, “Vento Leste,
vento Oeste”, que foi muito bem recebido pela crítica e que teve dezenas de
edições mundo afora, inclusive no Brasil. Todavia, sua obra mais premiada,
comentada e vendida foi “China, velha China” (título da primeira tradução para
o português, mudado, nas posteriores, para “A boa terra”), lançado um ano
depois, em 1931 e que vendeu 1,8 milhão de cópias somente no primeiro ano. E
mais, por ele, recebeu, em 1932, o Prêmio Pulitzer e, em 1938, o Nobel de
Literatura.
É uma obra-prima, sem dúvida. Mas o meu livro preferido é “Vento
Leste, vento Oeste”, embora goste demais de tudo o que já li de Pearl Buck,
sobretudo seus contos, gênero pelo qual tenho especial predileção em Literatura
de ficção, ao qual, aliás, me dedico, há já algumas décadas, como esforçado “aprendiz
de contista”. E por que tenho essa preferência, deixando “A boa terra” num
segundo plano? Porque desse romance emerge a personagem feminina “mais”
inesquecível das tantas criadas por Pearl Buck. E esse “mais” não é supérfluo.
É plenamente justificável, já que, sem exagero, todas as mulheres criadas e
retratadas por essa autora são inesquecíveis. E quem é essa protagonista que me
impressionou tanto? É a chinesa Kwei-Lan, a narradora do enredo dessa história
tão marcante que desperta tantas reflexões nos leitores.
Esclareço, para quem não teve o privilégio de ler este
romance, que “Vento Leste vento Oeste” trata, em essência, do momento em que uma
tradicional e cristalizada sociedade, com milenares e imutáveis costumes, no
caso a chinesa, começa a incorporar, a princípio sem se aperceber, determinados
elementos, digamos “modernos” do mundo ocidental. Essa incorporação, todavia,
em certo momento, é, sobretudo, conflituosa. Implica na ruptura de alguns
paradigmas, de padrões sociais estabelecidos há centenas, quiçá milhares de
gerações. Por isso, gera perplexidades e inúmeras dúvidas em quem entra em contato
com uma cultura que não é a sua. Os personagens vivem a aventura da inserção,
que se mostra, compreensivelmente, traumática pois, de repente, percebem que
não pertencem mais a mundo nenhum: nem ao tradicional, em que foram educados e muito
menos ao “novo”, cujos elementos não conseguem entender em profundidade e
assimilar por completo.
Kwei-Lan é produto típico dessa milenar cultura cristalizada,
em que a mulher tem papel absolutamente definido, de submissão e de irrestrita
obediência ao homem: ao pai, ao irmão e ao marido. Ela não contesta isso e nem
se rebela contra. Foi educada assim. Para ela, é a situação “normal”. Certo
dia, no entanto, Kwi-Lan deixa a nobre e refinada casa dos pais para se casar.
O marido, todavia, não é alguém criado e educado nos mesmos padrões culturais
dela. É um jovem que, embora chinês, recém retornou dos Estados Unidos, onde
tinha se formado em "medicina ocidental". Estudando na América, assimilou
os costumes do Ocidente, que passaram a ser os seus.
O conflito começa logo após a cerimônia matrimonial. O
marido de Kwei-Lan rompe de cara toda a sua expectativa quanto à união conjugal.
Propõe, por exemplo, que ambos durmam em quartos separados. Justifica sua
proposta argumentando que o casamento havia sido arranjado pelas famílias, e
não motivado pelo amor. Assim, não
consuma, como manda a tradição, a união conjugal, com a atônita esposa.
Kwei-Lan, portanto, permanece virgem, e assim ficará enquanto não sentir amor genuíno
pelo marido. Com a convivência, vai, aos poucos, assimilando as idéias e
costumes do esposo e gostando deles (e dele), não mais por obrigação, mas por
livre escolha.
Revelador é este monólogo de Kwei-Lan, habilmente urdido por
Pearl Buck, que demonstra o profundo conhecimento da autora da cultura chinesa:
“Vejo-me na festa do Dragão. Para esta circunstância, vestiram-me de seda
vermelha e rosa, bordada com flores de ameixeira. Ardo em impaciência esperando
a noite e a chegada de meu irmão que conduzir-me-á à beira do rio para ver
passar a barca do Dragão”. E prossegue: “Vejo a trêmula lanterna de lótus que
minha velha ama me presenteou no dia da festa das Lanternas.A ama ri-se de
minha expressão quando, uma vez chegada a noite, acendo o pavio da bruxuleante
vela”.
Kwei-Lan segue dando curso à suas lembranças: “Vejo-me
estando com passos lentos, ao lado de minha mãe, quando entrávamos no templo.
Observo como deposita o incenso na urna, e com ela me ajoelho piedosamente ante
os deuses, com o frio do medo na alma”. Ao fim e ao cabo, indaga, perplexa: “Eu
pergunto, irmã, como, com semelhante passado, me podia adaptar a um homem do
caráter de meu marido. Para que servem todos meus dons? Decido pôr-me uma
jaqueta de seda azul com botões negros incrustados de prata. Enfeitarei meus
cabelos com flores de jasmim, calçarei meus sapatos pretos bordados de azul e
saudarei meu senhor quando entrar... Faço-o assim, mas é em vão. Seus olhos
correm imediatamente para outras coisas... As cartas abertas em cima da mesa,
os livros. Para mim, nem um pensamento solitário”. Pobre e confusa Kwei-Lan, em
sua perplexidade com atitudes que não compreende!!
Aos poucos, porém, essa típica moça chinesa vai mudando seus
pensamentos: sobre si mesma, sobre sua visão do Ocidente em confronto com as idéias
que lhe foram incutidas desde tenra infância. E assimila, quase sem perceber,
costumes do marido. Confronta, em seu íntimo, as duas culturas tão díspares, em
alguns pontos, antagônicas, e com isso constrói seu próprio lugar no mundo. Não
revelarei mais nada sobre o enredo dessa obra-prima nem sobre essa personagem
feminina, rica em experiências que, pelo que vive e pelo que faz, se torna
absolutamente inesquecível na mente do leitor. Tire a prova. Leia essa
maravilha de romance, que é “Vento Leste vento Oeste”, de Pearl S. Buck.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Conflitos culturais, ainda que a internet esteja ficando velha, ainda existem. Nem dá para imaginar como teria acontecido esse encontro numa cultura tão fechada quanto deve ter sido a cultura chinesa. Agradeço pelo despertar da minha curiosidade.
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