A complexa criação de personagens
O processo de criação de personagens, na literatura de
ficção, é complexo e difícil (talvez impossível) de ser racionalizado. Mas...
vamos pelo menos tentar proceder a essa racionalização, até como saudável
exercício de raciocínio, que, convenhamos, nunca é tempo perdido. Os
protagonistas das histórias que inventamos têm que satisfazer uma série de
condições para justificar sua criação. A principal é a de emprestarem ação aos
enredos que elaboramos. São eles que “vivem” nossas histórias e fazem-nas
acontecer. Alguns já “nascem” em nossas cabeças para exercerem papéis de heróis
e outros tantos, em contraposição, são criados para serem vilões, além dos que
criamos para serem meros figurantes, sem tanta importância na trama. Todavia,
quanto mais tiverem características positivas e negativas misturadas, sem que
as virtudes sejam exageradamente maiores do que os defeitos, e vice-versa, mais
autênticos, verossímeis e, portanto, palatáveis serão.
Personagens sumamente virtuosos, perfeitos, sem defeitos e
nem máculas, beirando a santidade, não convencem. Afinal, nenhum ser humano é
assim. O mesmo vale para os extremamente perversos, que não tenham um único
resquício de bondade e de virtude, um mísero momento sequer de boas intenções e
boas ações, que sejam poços sem fundo de maldade, falsidade e violência. Estes não
passam de mal acabadas caricaturas, de delirantes estereótipos de homens ou de
mulheres. São ridículos e caricatos. Todo ser humano (ouso dizer que sem
exceção) têm suas cotas de bondade e de maldade, variando em grau, intensidade
e na capacidade de manifestarem a primeira, subjugando a segunda, e vice-versa.
Dia desses um leitor pediu-me a opinião sobre se eu acho que
escritores e escritoras criam personagens psicologicamente pelo menos
parecidos. Ou seja, se a visão feminina a propósito de homens e de mulheres, se
assemelha à masculina, sem que seu gênero interfira, de alguma forma, em sua
maneira de encarar a questão. Nunca havia pensado nisso. Portanto, naquele
momento, desconversei e mudei de assunto. Ou seja, não opinei. Todavia, refletindo
a propósito, em casa, cheguei a uma conclusão. A maneira como escritoras enxergam
os homens é diferente da visão dos escritores. O perfil psicológico de ambos
difere muito. O mesmo vale em relação à forma como ambos vêem as mulheres.
Não estou fazendo (e nem poderia) juízo de valor. Não afirmo
e nem afirmarei jamais que a visão das escritoras seja melhor (ou pior) do que
a dos escritores. É, contudo, diferente. Ambas têm idêntico valor. Até porque,
talento e criatividade não é questão de sexo. Há personagens (masculinos e
femininos) inesquecíveis, quer criados por mulheres, quer por homens. Mas eles
nunca criarão protagonistas iguais ou mesmo parecidos. Sua psicologia e a forma
de encararem o mundo são diferentes, de acordo, inclusive, com os hormônios que
determinam o que ambos são. Isso sem falar em cultura e tradições.
A esse propósito, tenho em mãos esclarecedor ensaio, de
autoria de Maria Luiza Bonorino Machado – doutoranda em Literatura Comparada
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – publicado na versão eletrônica
da “Revista Língua & Literatura”, intitulado “A sombra da mulher em Borges”,
que certamente citarei muitas vezes pelos subsídios que contém. Sua criteriosa
análise traz, em determinado parágrafo, esta constatação, com a qual concordo,
sem tirar e nem por: “ (...) O discurso
do narrador masculino na Literatura costuma representar a mulher de duas formas
básicas: a imagem da mulher-deusa e a imagem da mulher-demônio (...)”. E
não está certa? Basta atentar para as várias personagens femininas criadas por
escritores masculinos mundo e tempo afora.
Nesse aspecto, as escritoras são mais racionais. As
personagens femininas que criam são plenamente verossímeis. Por que? Porque tomam
por parâmetro, para aferição, a si próprias, o que nenhum escritor masculino
(obviamente) pode fazer. Quando se trata, contudo, de criar personagens homens,
o processo se inverte, e pelo mesmo motivo. Tratando, especificamente, de Jorge
Luís Borges, Maria Luiza observa: “ (...)
No narrador borgeano, esse discurso se manifesta na forma de uma mescla desses
dois tipos (a mulher-deusa e a mulher-demônio). Essa maneira de sentir e
representar o feminino é que nos leva a caracterizar esse narrador como masculino.
E mais do que masculino, ideologicamente patriarcal (...)”. Trazemos, em
nosso subconsciente (ou no inconsciente) aquele estereótipo referente ao papel
que milenarmente o homem atribuiu (injustamente) à mulher, mesmo que
conscientemente não concordemos com ele (e eu não concordo com ele): o de ser, “exclusivamente”,
a reprodutora e a cuidadora do lar.
Maria Luiza Bonorino Machado acrescenta (ainda tratando dos
contos de Borges): “ (...) O discurso do
narrador borgeano em sua mescla denota uma tensão interna no tocante a
determinados aspectos de representação da figura feminina e sua atitude para
com ela. Tensão esta que se torna mais clara quando pensamos no modo do sentir
do narrador em relação à amada morta (Beatriz e Teodolina) que é marcada por
uma ambivalência de sentimentos. Lamenta a perda da amada e ao mesmo tempo
parece aliviado com isso (...)”.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Ainda há uma maneira preconceituosa de classificar a escrita como literatura masculina e feminina, com espaço exiguo para o segundo sexo. Na última FLIP teve uma mesa de discussão sobre o tema, considerando-se que parte ínfima dos debatedores eram mulheres. Partindo daí, pode-se dizer que não há tal escrita, ainda que as personagens sejam explicitadas de forma diversa por homens e mulheres, pelas suas vivências, ainda hoje, algo diversas desde o berço.
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