Reencontro
* Por Pablo Uchoa
A mala, vazia sobre o armário, era como
a coroa pela conquista de um sonho de consumo.
Uma casa.
Roupas, livros, CDs e badulaques
devidamente acomodados em prateleiras e gavetas, lancei ao computador um olhar
de recaída por um caso antigo, meio saudoso, meio lascivo, que bom éramos
quando estávamos juntos, vamos repetir aqueles tempos?
E como uma velha amiga, aceitou-me de
volta o laptop. Naveguei por textos
antigos como quem se revira em lençóis de cheiro conhecido, e dedilhei no
teclado revivendo a insubstituível sensação de experimentar texturas
familiares.
Ora essa, fazia dois meses. Dois meses
que eu não escrevia uma crônica no fiel Toshiba que me acompanha por essas
bandas, bem entendido. O companheiro que passava praticamente todos os dias e
todas as horas ligado em épocas de deadlines
acadêmicos ou profissionais, quando também eu permanecia alerta em tempo quase
integral.
Nos últimos tempos, a falta de espaço e
o incômodo de escrever num apartamento que mal me cabia me haviam levado a
aventurar-me com outras máquinas de ocasião. Quando muito, usava o Toshiba para
baixar um email, respondia apenas às mensagens essenciais.
O grosso da atividade tecnológica era
no trabalho, ou na biblioteca pública, nos computadores rigorosamente
impessoais monitorados por competentes equipes de help-desk. Quem pode escrever com tamanha assepsia?
Dois meses depois, me inteiro de que o
velho Toshiba está doente. Falta-lhe memória, me parece.
Não demonstra sinais de cansaço, mas se
lhe imponho demasiado esforço, desliga e reinicia sozinho. De vez em quando
tarda alguns minutos para se recuperar. É preciso chamar o técnico.
Ainda assim, gosto de escrever nele.
Dedilho alguma crônica qualquer nota apenas para ouvir novamente o suave tamborilar
do teclado, a resistência gentil das letras, a-s-d..., dobrando-se ao toque dos
dedos.
Há um ponto gravado em relevo nas
teclas F4 e F8, e um traço discreto sob o J e o F, recursos de navegação para o
usuário cego.
Passo sobre eles a ponta dos dedos,
como se reconhecesse antigas cicatrizes e verrugas da velha amiga colorida. A
charmosa e familiar celulite da moça que, afinal de contas, já não é mais a
mesma, e nem poderia, graças a deus, pois piano a piano já se vão anos juntos
na estrada.
A amizade continua colorida.
As histórias da humanidade são as
mesmas, aqui nada se cria, tudo se recicla, já escreveram por aí há muito
tempo.
O Toshiba pode não ser a amiga de
peitos de almofada, nem o dedilhar dos teclados, o sono bom entre lençóis de
cheiro conhecido.
Mas tudo está lá: a estrada, e os anos.
As teclas levemente gastas pelo uso, polidas como os pés de nosso Senhor nas
igrejas de peregrino. E o dedilhar confortável, como os sapatinhos de cristal
nos pés de Cinderela.
Às vezes, viver é desenterrar tesouros
escondidos bem debaixo de nossos narizes.
(*) Cronista e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive
atualmente na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute for the Studies
of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do livro-reportagem
“Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003), menção honrosa no
prêmio Vladimir Herzog 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário