Os descompromissos do amor
* Por Rodrigo Ramazzini
-
Não há nada igualável ao brilho dos olhos quando nos apaixonamos à primeira
vista, meu jovem! – sentenciou-lhe o avô, batendo-lhe nas costas.
Salomão
ainda pensou como o avô descobrira que tal sentimento havia sido realmente
despertado dentro de si. Jovem, mal sabia que a alma é refletida pelos olhos.
Esta
cena aconteceu no aniversário de quinze anos de uma prima, quando Salomão viu
Alice pela primeira vez. Durante a festa falaram-se pouco, apenas uma apresentação
formal, mas marcaram de comunicar-se via internet. E foi o que aconteceu.
Salomão, tímido por personalidade, preferia expor as suas idéias, seu estilo de
vida, por escrito. Dizia ser mais “ele mesmo”, do que pessoalmente, falando.
Alice, entretanto, era o contrário, extrovertida, espalhafatosa, popular,
falava “pelos cotovelos”.
Apesar
de morarem na mesma cidade, falavam-se mais pela internet do que pessoalmente.
Passados oito meses, a intimidade era grande. Durante os bate-papos,
conversavam sobre tudo, desde os jogos de futebol de domingo até os seus
relacionamentos. E foi em uma destas conversas pelo computador, em que Alice contava das
suas peripécias junto aos garotos na última balada, que Salomão, em um raro
momento de coragem, resolveu declarar-se.
A
armazenada paixão explodiu despertada pelo sentimento de ciúmes. Foi um
desabafo! De alguém que carregou por meses esse “pesado fardo”. As lágrimas
escorriam enquanto demonstrava a Alice todo o seu amor. Surpresa, ela que
sempre o tratou como um grande amigo, declarou:
-
Não posso Salomão... Somos amigos... Melhor nos afastarmos.
Esta
negativa de Alice não foi o suficiente. Salomão, perdendo os traços de timidez,
passou, quase de forma doentia, os onze meses seguintes insistindo em ter um
relacionamento com Alice. Era em festas, via internet, na rua, em qualquer
lugar. Ela não tinha sossego. Chegou a ponto de muitas vezes ter que fugir das
suas “perseguições”.
Decorrido
este tempo, desiludido por não ter o seu amor correspondido, Salomão em melancólica
manhã após ler o horóscopo no jornal, que aconselhava no aspecto amoroso
“partir para uma nova aventura amorosa”, tomou uma decisão: não iria “correr”
mais atrás de Alice, apesar dos seus sentimentos. Quando ela soube, vibrou: -
Finalmente vai me deixa em paz!
Curiosamente,
com o passar dos dias, Alice começou a sentir falta de ter alguém no seu
encalço, de sentir-se amada. Além disso, a surpreendente notícia do sucesso de
Salomão com outras garotas também estava incomodando-a. Questões perturbadoras
começaram a transcorreram em seus pensamentos: - Será que gosto dele?. Por
estar sempre ao meu alcance é que nunca lhe dei atenção?
As
respostas vieram quando em uma festa, pela primeira vez, viu Salomão aos beijos
com uma garota. Os olhos encheram-se de lágrimas, e o banheiro foi o destino.
Saiu de lá decidida “afogar” as suas mágoas. Tomou “todas” na festa. Muito
bêbada, foi levada embora por um grupo de rapazes que aproveitaram o seu
estado, enfileiraram-se e transaram com Alice.
Essa
história da transa com vários rapazes espalhou-se pela cidade. Foi a fofoca
pertinente nos bate-papos no decorrer de várias semanas. Rotulada como as
profissionais do sexo, envergonhada, recolheu-se em casa. Suas “amigas”
distanciaram-se. E o apoio nesta hora difícil veio de quem ela nem imaginava:
Salomão.
Logo
que lhe contaram a história da Alice, ele não hesitou, e foi procurá-la. Ela
pensou em um primeiro momento em não recebê-lo, pois ainda emocionalmente
abalada, não sabia como reagiria ao ver o causador (assim o julgava) de todo o
seu sofrimento. Aconselhada pela mãe, resolveu conversar com ele. Quando
novamente se olharam, uma estranha sensação de segurança foi sentida por Alice.
O
sofrível bate-papo que se desenhara não aconteceu, pelo contrário, um animado e
gostoso conversar transcorreu na tarde daquele sábado. A adormecida intimidade
foi despertada, bem como a paixão de Salomão por Alice, que desta vez foi
correspondida. Começaram a namorar.
O
namoro estava emplacando quando uma notícia os pegou de surpresa: Alice estava
grávida. Passado “o susto”, resolveram morar juntos. Meses depois, nasceu
Julia.
Salomão
dedicou-se com empolgação nos anos seguintes a cuidar da filha. Estava sempre
preocupado com detalhes, nunca lhe deixava faltar nada. E como um pai “coruja”
emocionou-se com o primeiro engatinhar, com os primeiros passos, com a primeira
“comida de sal”, mas o ápice aconteceu quando ela chamou-o de “pai” pela
primeira vez.
O
amor de Salomão pela filha era algo notório, muitas vezes comentado pela própria
família. Amor esse que foi interrompido em uma chuvosa noite de sexta-feira,
quando Salomão saíra de carro em direção a uma farmácia para comprar um remédio
para Júlia, que estava com febre. No trajeto, um cachorro atravessou em frente
ao seu carro, e ao tentar desviar, chocou-se fortemente em uma árvore. Salomão
morreu na hora.
Anos
de luto e tristeza apoderaram-se de Alice. Entretanto, em certa tarde, junto à
cunhada Flávia, resolveram recordar de Salomão olhando um álbum de fotografias.
Folheavam o álbum enquanto falavam do seu carinho ao tratar as pessoas, da sua
alegria, e do seu amor por Alice e pela filha Julia. Ao falar sobre Julia,
Flávia decide fazer uma revelação:
-
Alice. Acho que está na hora de você saber algo.
-
O que foi Flávia? Fale logo.
-
É que quando o Salomão era novo, ele fez.
-
Fez o quê?
-
Nem me lembro o motivo direito, mas ele fez uma série de exames.
-
E?
-
E... E... E descobriu que ele tinha um problema de infertilidade.
-
Como é que é? O que você está me falando?
-Isso
mesmo que você escutou Alice. Ele era infértil. E nunca poderia ser pai.
*
Jornalista e cronista gaúcho
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