Lavando roupa na sanga
* Por
Elaine Tavares
Eu era pequena, mas lembro bem. Lavar a roupa, na casa da minha vó,
tinha significado de aventura. Quando ela começava a recolher a trouxa, a gente
já se preparava. Na pequena casa de madeira alaranjada, onde ela vivia com meu
avô, na comunidade de João Arreghi, não tinha água encanada. Daí que a simples
tarefa de lavar a roupa não podia ser realizada ali mesmo. Era preciso fazer
uma longa caminhada até a “sanga”, que era como todos chamavam a pequena
nascente que brotava no meio do descampado. O olho d´água vertia e formava um
pequeno lago, todo cheio de pedras redondas. A água era tão clarinha que se
podia ver o fundo, bem como toda a vida minúscula que pululava por ali.
A “sanga” era o espaço da alegria e do espanto. Nos dias de calor – que
era o tempo das férias – não havia nada melhor do que aquelas tardes a farfalhar
no riacho, inventando brincadeiras, tentando capturar os peixinhos pequenos que
dividiam a água com nossa balbúrdia. E a imagem da minha vó, revirando as
toalhas no gesto típico da lavadeira de rio, nunca saiu das minhas retinas. Era
uma cena de beleza, de força, de domínio. Ao longe, meu avô acenava, vez em
quando, entretido na tarefa cotidiana de cuidar das taipas que cercavam o
arroz. Mais tarde, se reunia com a gente, para a merenda, que ele mesmo
preparava e levava, para saborearmos enquanto a roupa quarava ao sol. E assim,
depois de toda a festa da lavação, no final da tarde, voltávamos com as bacias
cheias, e tudo era pendurado no varal atrás da casa.
Quando a noite descia e acendiam-se os lampiões de gás, a gente jantava
ouvindo o cricrilar dos grilos, enquanto a brisa quentinha fazia esvoaçar a
roupa. Ela secaria devagar, misturando vento, orvalho e depois o sol da manhã.
Talvez por isso tivesse aquele cheiro bom, num tempo em que ninguém sonhava com
amaciante. Era uma vida dura, a dos meus avós, mas recheada de pequenos espaços
de ternura. Meu avô era a criatura mais doce que eu já conheci e os verões na
sua casa fortaleceram em mim esses sentimentos.
Não sei se é por conta dessas imagens bucólicas da minha infância na
casa do vô, mas, para mim, lavar a roupa tem um quê de ritual. Durante muito
tempo vivi em quitinetes, onde não havia tanque, e aquele infortúnio pesava
sobre mim. Precisou passar muito tempo até que eu pudesse morar numa casinha
onde, altaneiro, o tanque ocupa espaço central. E, quando chega o domingo eu
revivo todo o percurso daquele longinquo tempo em João Arreghi. Passo por todos
os cômodos recolhendo a roupa que se forma em trouxa. Depois, parto com ela
para o quintal, onde o tanque, transbordante, se transforma em sanga. Ali, vou
lavando, uma a uma, as roupas, toalhas, lençóis. Girando cada uma naquele girar
típico das lavadeiras de rio, batendo na pedra, destilando, na força do braço,
todos os venenos acumulados. E canto, como cantam as lavadeiras. Da cozinha,
meu amor acena, sorrindo, carregado da mesma ternura que permeava minha
meninice.
Então, quando todas as peças estão esvoaçando no varal, eu sento e fico
observando o balanço, vivo e bruxólico. Posso sentir a quentura do sol, tocando
cada roupa, com numa suave carícia de amor. E elas ficam ali, atravessando a
noite, para acumular orvalho, tal e qual permitia minha vó. Quando secas, posso
sentir o mesmo perfume de roupa limpa, batida na sanga. Por isso me recuso ao
mecanicismo da máquina de lavar. Com ela não poderia sentir a energia viva do
ritual de força, de domínio, de beleza, que encerra o girar da roupa para o
baque surdo na pedra. Assim que essa tarefa cotidiana se reveste de mistérios e
de lembranças, todos os domingos, quando, sem que eu controle, me transformo, de
novo, naquela guria serelepe, que seguia pelo descampado, para o solene ritual
de lavar a roupa. E o que poderia ser um saco, vira espaço de belezas!!!
*
Jornalista de Florianópolis/SC
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