“Felicidade Clandestina”(*)
* Por Risomar Fasanaro
Quando se fala em 1968 o que vem
à cabeça da maioria das pessoas é repressão, tortura, exílio, ato institucional
n° 5. Enfim...só se pensa em
tristeza. Mas 68 não foi só isso. Havia toda uma juventude envolvida
com o que se passava no país, mas que como toda juventude queria aproveitar a
vida: cantar, dançar, namorar, enfim...Viver. E isso a ditadura de nenhum país
conseguiu impedir.
A Coordenadoria de Relações
Internacionais da Prefeitura e o Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco
realizaram uma semana de debates sobre a Greve de Osasco, o movimento
estudantil, a guerra do Vietnã e a
participação das mulheres em 1968.
Por isso prefiro falar do lado
feliz daquela época. Não tínhamos computador, nem celular, nem IPOD, nem nada
do que encanta os jovens de hoje, mas com nossos pobres mimeógrafos a álcool
(quando alguém tinha), produzíamos textos que rodavam pelas escolas, pelas
fábricas, pelas faculdades, sempre por debaixo dos panos e um único
gravador de fita mini-cassete, que passava de mão em mão para gravar as músicas
que participariam dos festivais. A gente nem conhecia o dono do gravador, mas
ele chegava às nossas mãos. Isso poderá dar às gerações de hoje o grau de
confiança e de solidariedade que nos unia. Mais do que isso, atesta o quanto
éramos felizes.
Aquele foi um período de grande
efervescência cultural. O movimento político não se dava de uma forma
monocórdica, em que só se tratava de militância; ele estava profundamente
envolvido com a literatura, com o cinema, com a música, com o teatro. E ao
mesmo tempo que se lia os textos de Marx, de Marcuse, de Regis Debret, lia-se
muito Oswald de Andrade, Guimarães Rosa,
fazia-se questão de ver Terra em
Transe de Glauber Rocha, de conhecer todas as canções de Chico, de Caetano,
de Gil, de Sérgio Ricardo.
..
Acredito que nos seria impossível
resistir às perdas que sofríamos todos os dias, dos nossos amigos, dos nossos
professores; impossível resistir ao desespero dos que eram mortos, à saudade
dos que partiam para o exílio, se não fôssemos ancorados pelo trabalho daqueles
que produziam cultura, dos que produziam arte.
O que seria de nós se não
fôssemos embalados pelo canto do Chico Buarque, pelos sons e cores da
Tropicália, pela voz de Elis, pelas rodas-de-capoeira, pelas cirandas
pernambucanas, pela pílula anticoncepcional, que nos liberou sexualmente, e por
tudo que a cultura nos proporcionou naquele período, e que foi de certa forma
nossa resposta revolucionária ao que eles nos impunham?
Eles, os que aplicaram o golpe,
pensaram que estavam fazendo uma revolução. Que pena... não perceberam que na
verdade, não se faz uma revolução apenas com armas, com fardas, atos e
decretos. As armas, os decretos, as torturas instauraram apenas o medo, a
revolta, o rancor. Revolução foi o que fizemos. Com pensamento, sentimento,
criatividade, solidariedade e resistência.
Não saberia dizer (não tenho
conhecimento para isso) se as revoluções, frutos da realidade que nos cerca,
brotam lentamente na alma das pessoas, germinam, crescem, dão flores e frutos,
ou se surgem de repente, sem razão nem perdão e nos levam a mover montanhas. Se
são algo maior que nós. E isso, me desculpem os generais, aquela revolução
existiu, mas não na direção que eles queriam e sim exatamente no sentido
oposto.
E quero aqui reiterar: fomos
felizes sim. Muito felizes! Nunca se viu peças de teatro com tamanha riqueza de
texto, de montagem, de tudo. Relembrar Os Mutantes com Rita Lee vestida
de noiva, a banda toda com o rosto pintado demonstra que a novidade, a
vanguarda de hoje surgiu com a nossa geração.
E havia também o Pasquim o
jornal que revolucionou a imprensa brasileira. Era impossível não vibrar com as
entrevistas que eles publicavam. Ler o Fradim do Henfil, as tiras da
Graúna era esquecer qualquer tristeza. Era impossível não gargalhar ao ler no
“Última Hora” O Festival de
Besteiras que Assola o País, do Stanislaw Ponte Preta. Não, 1968 não foi só
tristeza, não foi só tortura, morte, exílio. Foi principalmente carnavalização.
Um carnaval de resistência, pois não aceitamos passivamente o açoite dos
algozes.
Depois de 68 nunca mais nem o
mundo nem o país foram os mesmos. E foi graças à “divina loucura” de Zé Celso,
de Glauber Rocha, de Leila Diniz, que
hoje estamos aqui.
E não é possível esquecer o
chazinho na casa do amigo, em um domingo chuvoso com a voz de Violeta Parra
cantando Gracias a La Vida
indefinidamente na vitrola. Se não fosse tudo isso, o que teria sido nossa vida
durante a ditadura?!
(*) Título de um conto de Clarice Lispector
*
Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora
de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de
Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e
José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
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