A um livro que não se deixa escrever
* Por
Cecília Prada
Vem, Livro, senta aqui
ao lado da minha cama, pega na minha mão, vem, eu não posso dormir de tanta
tensão - tenho de te parir. Afaga a minha cabeça, me põe no colo - ou sou eu ‚
que te devo por no meu? Eu sou tua escriba. Você me usa para se expressar,
impiedoso, ambíguo, quando quer , - teu bel prazer, se escorregando nas pontas
- peixe ensebado, se negando, sem se entregar. Eu estou exausta.Você não podia
vir se derramando sem mais frescuras, todo fluência e se contando?
Não. Você tinha de ser
feito de pedra, como tudo. Livro-pedra no sapato. Queria te pensar gostoso, livro-sorvete,
se derretendo no céu da boca, sorvete de limão no calor, chazinho quente no
inverno. É assim que os livros bem comportados se comportam.Vai. Senta a¡ do
lado da cama da minha madrugada insone. Vai me contando uma história, Livro.
Pode ser a tua. Ou a minha, melhor. Sou toda ouvidos. (ah! isto o que eu queria
ser, não mais a menina faladeira, a que fala pelos quatro cotovelos literários,
mas a menina que escuta histórias imemoriais...)
"...se não fosse
Édipo e o casamento, o que haveria para se contar?", e aí está o Ponto de
Nó - que é dito não por mim, mas por Roland Barthes.
* Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como
jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de
Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo.
É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos
publicados, dentre os quais: O caos na
sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de
vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas
estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de
carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações
Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance
autobiográfico.
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