Cara, cadê
meu enredo?
* Por
Fernando Yanmar Narciso
Todos já nos cansamos de ouvir desde que a TV foi inventada que, no
fundo, novela é tudo igual. Basta mudar os nomes dos personagens, algumas
localidades e motivações e já temos um produto com cheirinho de novo para
oferecer à audiência, que mesmo cientes da previsibilidade dos desenrolares da
trama, permanecerá disposto a ficar sentado na frente da tela por sete ou oito
meses até que os antagonistas recebam seus cascudos finais e o casal principal
viva feliz para sempre... Ou até que saiam os papeis do divórcio.
Mas será que “novela é tudo igual” mesmo? Para tentar comprovar ou
derrubar essa famosa tese, resolvi criar minha própria “pseudo-sinopse”
experimental, misturando nesse artigo trechos de várias novelas famosas, fora
de ordem cronológica e contexto, mudando apenas nomes de personagens e
localidades, como expliquei acima, e tentando dar alguma coerência à
calamidade. Leiam atentamente e me digam no final se não ficou aquela sensação
de dejá- vu...
UMA FÁBULA MUITO COMPLICADA
Nossa, por assim dizer, novela tem início na década de 1970. Heroína
Araújo, uma moça de família humilde, está de casamento marcado com o jogador
profissional de bilhar Mocinho de Freitas, que por sua vez mantém um caso às
escondidas com Traíra, irmã caçula de Heroína. O que ele sequer desconfia é
que, uma noite após sua consagração como maior campeão de bilhar do país,
vencendo o lendário jogador Ruy Chapéu numa partida acirradíssima, ele acaba
engravidando as duas numa comemoração regada a álcool, drogas e Os Mutantes na
vitrola. Passam-se alguns meses e a barriga das duas cresce, com Traíra tendo
sido expulsa de casa por ter inventado a história que foi o dono do botequim
quem a engravidou. O pai das duas, Cegueta, vai tirar satisfações com o homem e
acaba matando ele a tijoladas na frente de todo o bairro, indo parar na cadeia,
como qualquer injustiçado de novela.
Na noite do casamento, Traíra, aparentemente arrependida por ter
enganado a própria irmã por tantos anos, resolve contar aos dois que também
está grávida de Mocinho, em plena hora do “sim”. Num ataque de histeria,
Heroína pisoteia o buquê, rasga o vestido com os dentes e se engalfinha com a
irmã no altar diante de todos os convidados. Depois de ser contida pelo
ex-noivo e pela mãe, Heroína, desvairada, vai embora da igreja e nunca mais é
vista. Como você já deve ter manjado, era tudo um plano de traíra, que é
completamente obcecada por Mocinho e não podia suportar a idéia de ver seu
amado se casando com outra. Andando sem rumo pelas ruas do Rio, Heroína acaba
sendo adotada por uma família de mendigos que vivem embaixo de um viaduto.
Passam-se os meses e ambas as crianças nascem: Traíra, já casada com Mocinho,
dá a luz a Murilo José, enquanto Heroína, agora usando o pseudônimo Maria
Vendeta, dá a luz de maneira sofrida debaixo da ponte a Justinho, jurando algum
dia colocar tudo em pratos limpos com a irmã, o ex-noivo e o resto da família.
Passam-se dez anos. Vendeta/Heroína conseguiu ascender miraculosamente
por seus próprios méritos, retirando sua família adotiva das ruas e construindo
com ela um inovador serviço de lava-rápido nos semáforos, tirando muitos outros
jovens de rua do mau caminho. Porém, apesar do nome, Justinho de justo não tem
nada. Posa de jovem de boa índole para a mãe, mas é o rei do bullying no
colégio e nos negócios da mãe em segredo.
Traíra, por sua vez, não teve melhor sorte. Um ano após se casar com um
relutante Mocinho, seus problemas de hérnia de disco o forçaram a abandonar a
carreira de jogador de bilhar, e ainda hoje eles vivem com a família Araújo no
Morro do Turano, tentando tirar seu sustento de bicos e um ou outro negócio
moralmente questionável. Murilinho, apesar de ser um menino do bem, não serve
para muita coisa além de jogar Atari na casa do vizinho, ler revistinhas do Zé
Carioca e torcer pro Flamengo. Depois de liberado de sua estadia na prisão,
Cegueta adoeceu de gota e não serve pra muita coisa em casa... Além de parecer
irresistível aos olhos de Fulaninha, a vizinha do lado... E para Carlinhos
Epaminondas, filho adolescente dela. Dona Romaria, mãe das irmãs, é forçada a
tentar sustentar o bando de vagabundos da família sozinha, trabalhando como
quituteira de dia e como cafetina à noite.
Os destinos de Maria Vendeta e Traíra voltam a se cruzar quando, num dia
que mãe e filho estavam num banco, ocorreu de o mesmo ser assaltado pela irmã
maldosa, seu marido e seus comparsas! (Lógica de novela, não façam perguntas)
Traíra só percebe com quem voltou a lidar quando faz todos no banco de reféns e
seus olhares se encontram no meio da multidão. Em mais uma hilariante
conveniência, a bandida percebe que o seu filho e o da irmã são praticamente
gêmeos, e começa a pensar numa forma de se aproveitar dessa descoberta.
Enquanto as irmãs discutiam acaloradamente diante de todos, infelizmente a
bomba que Mocinho planejava usar para abrir o cofre sofre um curto-circuito e
causa um enorme incêndio no prédio!
Quase todas as vítimas saem gravemente feridas do incidente, e as irmãs
acabam sendo internadas- adivinhem só!- no mesmo quarto do hospital, onde
passam o dia se destruindo verbalmente e irritando todo mundo no pavilhão. Já
recuperadas, voltam aos seus afazeres. Traíra volta à vida de crimes decidida a
sequestrar o filho de Heroína e colocar Murilinho no lugar dele, como se isso
fosse de algum modo arruinar a vida da irmã e, de acordo com o maniqueísmo
folhetinesco, ela julgasse que Justinho fosse tão careta quanto a mãe. E só pra
variar, quando já podia andar novamente, Mocinho aproveita um dia que sua
mulher estava sedada para contar para Heroína que tinha se arrependido
amargamente por tê-la traído e se casado com Traíra, deixando no ar que ainda é
apaixonado pela ex.
E, só pra variar, todos os grandes, médios e pequenos conflitos da trama
serão resolvidos de maneira quase mágica e absolutamente atropelada nas últimas
duas semanas no ar. Sucesso garantido!
*Designer e escritor. Sites:
HTTP://www.facebook.com/fernandoyanmar.narciso
http://cyberyanmar.deviantart.com
HTTP://www.facebook.com/terradeexcluidos
http://cyberyanmar.deviantart.com
HTTP://www.facebook.com/terradeexcluidos
Nenhum comentário:
Postar um comentário