Brasília soterrada no Sahara Brasiliae
* Por Elaine
Tavares
Li o
novo livro de Raimundo Caruso, Sahara Brasiliae, em pequenas doses.
Devagar, como a própria narrativa, que avança e recua por uma cidade fantasma.
A história fala da capital brasileira que, um belo dia, amanhece tomada pela
areia, num calor escaldante. Nela, apenas alguns personagens vagueiam, ligados,
mas sem nunca se encontrar. Tudo é silêncio e solidão. Calor, abafamento,
angustia, sensação de abandono e caos. E, como a areia se move com o vento, a
cidade vai se mostrando e desaparecendo, ao mesmo tempo, num movimento sem fim
e vertiginoso. Os personagens, ficantes no inferno amarelo que se tornou
Brasília, vão nos instigando. Uma tradutora, um ciclista, o narrador, o
arcebispo, os políticos, um bibliófilo, um blogueiro, um arcebispo. São figuras
estranhas e, ao mesmo tempo, tão reais e próximas que, por vezes, quase lhe
reconhecemos as feições.
As
andanças do narrador pela cidade deserta são descritas em narrativa vigorosa e
dura. Hora lenta, ora ligeira. O texto nos envolve como se fora uma profusão de
pequenas cenas, reais e visíveis. A gente consegue sentir a areia entrando
pelos poros, os cheiros e, por vezes, quase desfalecer com o calor que emana da
trama. O trecho em que o caminhante entra em um mercado, no qual as comidas
todas estão apodrecendo com o calor sufocante, é de arrepiar. Produtos
químicos, transgênicos, conservantes e toda a sorte de porcarias que se
adicionam aos alimentos parecem adquirir vida e nos mostram todo o terror que,
cotidianamente, essas coisas que comemos contêm, sem que nos demos conta. É
talvez o momento mais impactante do livro. Uma podridão que nos arrasta, e que
está dentro de nós.
Raimundo
escreveu o livro antes das jornadas de luta do mês de junho, mas, a
problemática política do país está completamente presente no romance, quase
como se fosse um texto premonitório. A Brasilia ocupada pela areia ainda é a
nossa confusa e desumana capital, com todas as suas belezas e contradições. O
centro de uma política que tem uma opção de classe. E que não é a das gentes
comuns. Por isso, na trama, Caruso acrescenta, em relevo, dois escritores que
deixaram sua marca na humanidade: Erasmo de Rotterdam e Thomas More. E, assim,
entre a loucura do status quo e a utopia que nos move para a
transformação, nós também vamos escalando as montanhas de areia, tentando
respirar num ambiente que nos oprime para além do físico.
A
narrativa de Raimundo Caruso ainda oferece outros subtextos. É também, por
vezes, uma espécie de ode à palavra mesma, essa ferramenta de quem escreve. O
autor e o narrador estão sempre a buscar uma, duas, três palavras que se dizem,
ao mesmo tempo, sinônimas, reforçando sentidos e se mostrando quase autônomas,
como de fato são. Outro subtexto é reverente amor de Caruso pelos livros. Um
toque de Maupassant, Whitman, Somerset, Poe, Goethe e tantos outros que revelam
os dias e noites de infinitas leituras. Também não fica de fora a América
Latina e as novidadeiras realidades de lugares como a Bolívia, Venezuela,
Equador que desvelam um autor ligado nos transformações do nosso continente.
Sahara
Brasiliae é sufocante, estridente, instigante,
intimista e revelador. De alguma forma condensa também a trajetória desse
escritor que iniciou sua trilha de escriba no romance, passando depois pelo
jornalismo. Como Caruso, o homem que caminha pela areia da cidade soterrada não
está perdido no caos. Apesar do absurdo da realidade ele se move com confiança,
seguro, sabendo onde buscar o que precisa ser visto. E, ainda que nenhum dos
personagens se encontrem ao longo da trama, o narrador consegue ligar essas
vidas de tal forma que ao final a impressão que fica é de que ele encarna cada
uma daquelas almas. O autor é a totalização de todos os personagens. Talvez
seja por isso que quando a areia da cidade se esvai, tudo o que fica é a
perplexidade daquele que, sendo muitos, nada mais tem a fazer do que seguir seu
caminho, esgrimindo as palavras e construindo novos mundos. Diante do
completamente inesperado, sobe no táxi, e recomeça.
É como
uma metáfora de nós mesmos. Dando combate à solidão, à realidade de um país em
escombros, ao nosso próprio medo de estar soterrado e perdido no calor. A
última página aparece como um vento fresco e, como o autor, não nos resta outra
opção que fazer um sinal ao táxi, e seguir adiante, não sem estar com a alma em
ebulição. Mas, ao que parece, esse é o destino da gente. Nunca paralisar diante
do absurdo.
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Para
encomendar o romance de Raimundo Caruso, faça o pedido pelo correio eletrônico:
livro.sahara@gmail.com
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Jornalista de Florianópolis/SC
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