domingo, 7 de julho de 2013

Ladeira da Memória

Adeus ao amigo guerreiro

* Por Pedro J. Bondaczuk

O Nick morreu. Perdi um dos meus mais fieis, leais e constantes amigos. Pelo menos era o mais onipresente, com o qual podia contar a qualquer momento, de dia ou à noite, pois estava sempre ao meu redor, ao meu lado, aqui em casa ou nas viagens que fazíamos. Adorava andar de carro e exigia ficar sempre em uma janela. A morte não ocorreu agora. Foi há já algum tempo. Todavia, dado o vazio que me deixou (aliás, deixou-o em toda a família), não tive coragem de tocar no assunto até aqui. As perdas são sempre assim: traumáticas. Por isso, demandam tempo para que sejam aceitas e absorvidas. Algumas nunca são.

Esclareço, para quem não é meu leitor assíduo, que Nick, sobre o qual escrevi tantas vezes, era meu cachorro de estimação. E põe estimação nisso! Viveu conosco por 14 anos. Era, portanto, dada a convivência, considerado membro legítimo da família, com direitos e privilégios que a maioria dos cães do mundo não tem, e sem nenhuma responsabilidade que não a de retribuir nosso amor com irrestrita fidelidade. Era asseado e disciplinado. Tinha seu cantinho próprio na casa, com uma cama até bem confortável e uma espécie de banheiro para as necessidades fisiológicas. Seu cardápio era o mais saudável possível, elaborado por seu médico particular (no caso, seu veterinário). Adorava os banhos semanais, no petshop, e sempre com o mesmo funcionário, pelo qual, aliás, se afeiçoou. Tinha que ser sempre aquele. Caso fosse outro, rebelava-se e se tornava agressivo, quase incontrolável.

Se tinha todas essas mordomias, por que morreu? Bem, o Nick morreu de velhice. Os especialistas dizem que cada ano de vida de um cão equivale a sete de nós, humanos. Fazendo as contas, portanto, meu amigão morreu ao equivalente a 98 anos de idade! Foi, como se vê, um sobrevivente. Nos últimos tempos já não enxergava direito e vivia trombando com móveis e paredes da casa, para seu constrangimento e irritação e para nossa preocupação. Mesmo nessa fase de declínio, Nick não perdeu sua principal característica: valentia.

Era um cachorro (como poderia dizer?) “temperamental”. Quando contrariado, não poupava nem mesmo a mim, seu amigo preferido. Foram inúmeras as mordidas que levei nas vezes em que agi de forma a desagradá-lo. O curioso é que, após me agredir, passada a irritação, agia comigo como se nada tivesse acontecido. Pulava no meu colo, lambia insistentemente meu rosto e me fazia muita festa, como que a pedir desculpas. Tenho algumas cicatrizes nas mãos a comprovar seus ataques, sempre precedidos de rosnados a me advertir que não fizesse determinadas coisas que não gostava.

Aliás, o Nick tinha complexo de superioridade. Era um animal pequeno – um “Toy” branquinho, que fazia jus ao significado da palavra que designava sua raça, ou seja, “brinquedo”, em inglês (e parecia, mesmo, um brinquedinho peludo) – mas se comportava como feroz pitbul. Não temia e, aliás, até procurava uma boa briga. Foram incontáveis as vezes que, ao sair a passeio comigo, desvencilhou-se da coleira com a qual eu o conduzia, para desafiar cães quatro ou cinco vezes maiores do que ele, em renhidos confrontos.

Em várias ocasiões tive que socorrê-lo nessas refregas, tirando-o da bocarra de adversários enormes e malvados. Em vez de se dar por vencido, porém, ou de mostrar um tiquinho que fosse de gratidão, renovava as investidas, como se estivesse vencendo as batalhas. E em nove entre dez vezes punha os grandalhões para correr, provavelmente assustados com sua persistência ou teimosia. O Nick era assim: nunca se dava por vencido. E alguém que ousasse ameaçar-me, ou agir de sorte a que ele interpretasse como ameaça ao seu “protegido” (no caso, eu)!  Avançava, entre latidos e rosnados, e não havia força no mundo que conseguisse acalmá-lo. Julgava ser o único com direito a me morder, mas só quando entendia que eu merecia ser “corrigido”. Uma coisa tem que ser dita em seu favor: jamais atacou meu neto mais velho, o Pedro (o João Vítor ainda não era nascido) e, ademais, a nenhuma outra criança.

Na maior parte do tempo, contudo, o Nick era um doce de criatura. Tinha uma espécie de relógio infalível no cérebro. Sabia a hora exata em que eu voltava da rua, do trabalho ou das compras e, fizesse sol ou chuva, lá estava ele, invariavelmente, no portão a me esperar, fazendo-me festa por no mínimo meia hora. E ai de mim se não lhe desse atenção! Olhava feio para o meu lado, rosnava e eu, que conhecia tão bem seu temperamento e não era bobo e nem nada, prudentemente cedia e o acarinhava. Manteve esse hábito até o dia da sua morte, já velho, lento em seus movimentos e enxergando muito mal. E nem então perdeu seu instinto protetor. Muito menos seu complexo de pitbul.

Ofereceram-me, dia desses, um cãozinho parecidíssimo com o Nick quando pequeno. Relutei. Até tive impulso de aceitá-lo, mas acabei por recusar a oferta. Ainda é muito cedo para ao menos cogitar em substituí-lo. Pensando bem, o Nick é e sempre será insubstituível. Duvido que haja no mundo outro “Toy” com aquele complexo de pitbul, que tanto me divertia e não raro me exasperava. Pode ser que mais tarde até aceite nova amizade do tipo, mas...

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 


Um comentário:

  1. Um amor do tamanho do mundo. Eu nunca tive um cachorro, e começo a pensar no quanto perdi com isso.

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