Viva a periferia!
* Por Risomar Fasanaro
Presa dentro do carro, sem o
aparelho de som que já me foi roubado duas vezes, o único remédio é pensar. Sem
ao menos alguns botões para conversar, converso comigo mesma, ou melhor, penso.
Apenas penso. Tento descobrir o que significa essa imobilidade, o que nos levou
a isso.
Seriam os congestionamentos nos grandes
centros uma metáfora? Não sei. Olho os carros
que se arrastam ao meu lado: vidros escuros e fechados; algumas pessoas que
passam ao lado dos automóveis, todas com um MP3, ouvindo suas canções
prediletas. Lembro da academia de ginástica: embora lotada, ali cada um está
sozinho “ralando” como se diz atualmente, isolado de tudo e de todos. Não há
interação.
Cansada daquele isolamento e
daquele som horrível, entre ficar em forma e ficar surda, optei por manter
minha audição. Troquei a academia por caminhadas em um parque arborizado onde
até os bambus cantam, quando soprados pelo vento.
Mas, voltando aos
congestionamentos: há poucos dias um trajeto que antes eu fazia em vinte
minutos, realizei em quatro horas. Sim, foi no dia da “Parada Gay”. Em dias de
congestionamento “normal”, quando há alguma partida de futebol, realizo esse
percurso em duas horas, 2h30, embora, se não houvesse tantos carros, fosse possível
realizá-lo em apenas vinte minutos.
E para fugir àquela paralisação,
me vem a imagem da periferia: poucos carros circulando, crianças soltando
pipas, os bares onde todos se conhecem, riem e falam alto, mais adiante um
grupo de pessoas construindo alguma moradia em forma de mutirão. E comparando
me pergunto: será que o congestionamento que acontece nos grandes centros não
se restringe apenas ao trânsito? Será que vai além? Será que a vida não está
lá? Nos bairros, nos subúrbios?
Sim, é claro que ali também as
drogas, a violência estão presentes, mas não podemos esquecer que não só elas ali
residem, também a criatividade, a solidariedade, a alegria de viver.
Continuo pensando. Relembro
Pixinguinha, e os grandes sambistas como Noel Rosa, Cartola, Ismael Silva, e
mais recentemente Zeca Pagodinho, Martinho da Vila... Eles saíram de onde? Da
periferia. Isso não quer dizer que não haja muitos gênios em todas as áreas de
ciências e cultura também nos centros das grandes cidades. O que não podemos é
deixar de reconhecer a força, a vitalidade dos que estão fora desses circuitos.
Hoje, mais do que antes, os
subúrbios parecem comandar a criatividade. É de lá que saem as novidades da
moda: as calças rasgadas, as bolsas, cintos, coletes feitos com lacre de latinhas
de refrigerantes. E para nosso espanto, até algumas experiências criativas com
cinema, que é uma arte que exige mais requinte, surgem em alguns bairros. No
filme documentário “Encontro com Milton Santos: o mundo global visto do lado de
cá”, o diretor Sílvio Tendler entrevistou alguns jovens carentes realizando
seus filmes na periferia de Brasília. E os trata com a mesma consideração que
dispensa a alguns diretores daqui e do estrangeiro, chamando-os de cineastas.
Foi bem distante do centro de São
Paulo que vi grupos de dança de rua que superam alguns profissionais que se
apresentam em casas noturnas. É a oeste da capital paulistana que estão grandes
grafiteiros do país como Dingos, Bob, Phero, Dinho e outros. E não estranhem os
codinomes, só assim eles conseguiram aprimorar sua arte durante anos e anos
perseguidos pela polícia, que não entendia a arte daqueles meninos. E foi sob
intensa perseguição policial que continuaram embelezando muros, túneis e
viadutos dos grandes centros. E é lá, afastados dos grandes centros que,
ironicamente, muitos estão customizando tênis vendidos em lojas de luxo das
grandes capitais do país, e alguns até já expõem seus trabalhos em países da
União Européia.
Ah... a periferia... Ali as pessoas conversam, trocam idéias, e essas
idéias circulam porque há espaço para isso. Quase tudo se faz em conjunto. Inclusive ,
e muito freqüentemente, “uma vaquinha” para comprar um caixão, para o amigo
morto.
Muitas vezes esses jovens vêm de
várias cidades, e se reúnem para grafitar um muro, formar um grupo de dança de
rua, uma banda de rap, de funk... Enfim, é o hip hop um rio de novidades que nem
sempre corre e vai desaguar nos grandes centros, porque com esses
congestionamentos não há espaço. E temo que de tanta paralisação os corações das
cidades não resistam e sofram um enfarte fulminante.
*
Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora
de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de
Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e
José Louzeiro.
Um bom caminho: largar o tédio e ficar pensando no congestionamento. Em boas coisas e novos caminhos.
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