A
mulher, o jardineiro, ex-marido e amante
* Por Marcos Alves
A noite estava perfeita. O clima agradável, o trânsito
fluía...conseguiram vaga assim que chegaram ao restaurante. Os dois nem
seguravam o sorriso, que insistia em escapar pelo canto da boca. A banda tocava
uma música romântica. A luz era perfeita. Escolheram a mesa do fundo, perto da
janela.
Ele estava radiante. ‘Agora vai’, pensou enquanto
mirava a fêmea, alvo de tantos estratagemas, ensaios e micos, diga-se. De
emprego novo, estava mo-ti-va-do. Era uma questão dela dizer “sim”. Pronto. Em
5 minutos sairiam dali direto para o apartamento dele, onde poderiam gozar da
felicidade merecida. Era quase uma idéia fixa que ele se esforçava para não
ter.
Ela tinha um ar de mistério, passava por uma fase de
transição. Separada há dois anos, experimentava a primeira relação parecida com
um começo de namoro. Tudo estava ainda na fase da pesquisa, queria conhecer
melhor o pretendente e também descobrir o que de fato sentia por ele. Contudo,
estava contente por ter aceito o convite. Não se sentia exposta, pelo
contrário, estava bem ali. Enfrentava finalmente essa espécie de resistência,
estava de novo em companhia de um homem numa ocasião social.
Falaram de amenidades a maior parte do tempo. A
qualquer olhar mais incisivo dele ela desviava o dela, e com graça emendava
outro assunto. Em um momento de distração ele a segurou pela mão e disse um elogio. Ela agradeceu, e num
misto de suavidade e firmeza retirou a mão. De volta, despediram-se no portão.
A vizinhança marcava junto. “Ela saiu de novo com
aquele rapaz”, era o comentário comum na esquina. O buchicho corria rápido. Os
homens o levavam para o trabalho para dividi-lo com os colegas. As mulheres
tinham à mão o poderoso telefone. E não raro essas maledicências chegavam aos
ouvidos do ex-marido, que entre constrangido e raivoso procurava mudar de
assunto. À noite, na casa da mãe para onde voltara logo que terminou o
casamento, ficava pensando naquilo. “Aquela ingrata dizia que me amava”. E o
som de Zezé di Camargo e Luciano em cima do criado mudo.
Não era o tipo de sujeito capaz de matar o rival. Não
tinha o orgulho ferido, não sentia a honra diminuída, nada disso. Era dor de
cotovelo mesmo. Ainda gostava dela e algo lhe dizia que ela também ainda nutria
por ele algum sentimento. A mulher dominava os dois homens.
Ela tinha que dar conta do serviço de casa, cuidar do
filho. Trabalhava à tarde na escola do bairro. A mãe dela morava numa cidade
vizinha, para onde ia na maioria dos finais de semana. A rotina não mudara
tanto a não ser quando era tomada por pensamentos assustadores ou vulgares, e
intimamente desejava proteção. Queria apenas ser mulher, não heroína.
E assim foi por meses, o “namorado” muito atencioso.
Um ótimo companheiro – embora travasse uma luta brutal contra a ansiedade e o
desejo de possuí-la. O ex-marido ficava na dele: inconformado, mas sem
perturbar ou aparecer sem ser convidado. O garoto aceitava bem o novo amigo da
mãe, mesmo que preferisse o pai. Com o tempo as coisas iam se ajeitando.
Naquele fim de semana ela não iria para a casa da mãe.
Queria dar uma boa faxina no sábado de manhã, à tarde iria ao shopping e depois
dormiria cedo. No domingo, convidaria o namorado para um almoço íntimo. O filho
ia passar o dia fora, no clube com a família de um amigo do colégio. Ligou para
o amigo, que ficou todo animado como sempre. Na verdade ela não gostava muito
dessa animação toda, mas... o que fazer?
O ex-marido trabalhou na sexta, e passou o sábado
remoendo os pensamentos. Tinha ficado sabendo do jantar e agora escutou o boato
do almoço. O rival também arquitetava um plano infalível. Noites e noites de
tentativas quase sempre inúteis. Mas ela mesma dizia que, quando fosse a hora
saberiam aproveitar.
Era chegado o momento. Os dois finalmente
celebravam aquele momento especial. Ela
surgiu de banho tomado, um vestido florido, levemente transparente. "Meu
bem, pega a cerveja enquanto eu ligo o som". Ele sentiu um arrepio na
espinha. Jamais fora tratado dessa maneira dentro daquela casa. Tinham
privacidade e, o mais importante, finalmente pareciam querer aproveitá-la
juntos.
Nesse final de manhã agradável, o sol dava brilho à
grama verde do quintal depois da chuva da madrugada. O casal ergue um brinde no
centro da sala, e ao aproximar dos copos...Tschack! O som do cruzar de tesouras
corta os acordes de "Detalhes", e Roberto Carlos deixa de ser o tema
da conversa. "Quem está aí?", ele pergunta. "Não sei!", ela
responde. Da janela, o ex-marido com ar bem disposto emenda: "Combinei de
cortar a grama, lembra?".
Da calçada, o vizinho da frente pergunta: "Por
onde tem andado?", ao que ele diz que anda cuidando da vida e aproveitou o
domingo para um serviço que há tempos vinha adiando. Ela o chama para uma
conversa e o amigo espera no sofá. O casal vai conversar na área de serviço e o
amigo resolve ir embora. Ela explode de raiva, xinga, diz que ele não devia ter
feito aquilo e entra. A caminho do portão ele se volta a tempo de vê-la na
janela. Está simplesmente linda naquele vestido. "Você não desiste",
ela diz, com um jeito manhoso. Ele pergunta se pode terminar o serviço. Acaba
ficando para o almoço. Ela decide não perder a tarde, ainda que tudo
continuasse mal resolvido. Antes assim.
*Jornalista, www.marcos-alves.blogspot.com
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