Eppur
si muove: Plutão, Estamira
* Por Ronaldo
Bressane
Não obstante sua extraordinária
beleza plástica, Estamira, documentário de Marcos
Prado, é daqueles filmes por si necessários – talvez o único filme
brasileiro realmente indispensável este ano (há uma excelente resenha do filme
aqui, www.cinemaemcena.com.br/crit_editor_filme.asp?cod=4687).
Apesar do último lugar na lista pequeno-burguesa de personagens que gravitam
nosso imaginário consumista e pseudointelectual, a protagonista, Estamira, uma
senhora de seus sessenta anos que vive no lixão de Gramacho, em Duque de Caxias
(RJ), na Baixada Fluminense, neste
século 21, não escapará jamais de nosso inconsciente, tão-logo deixamos a sala
de cinema. E embora você não se importe mais com esse tipo de nonada, todo o
lixo que produz todos os dias vai para algum lugar, ser manipulado por mãos
humanas, ou quase isso – e não por habitantes de Plutão (mais sobre a saga do planetóide aqui, pt.wikipedia.org/wiki/Plut%C3%A3o
).
Marcos Prado passou sete anos
documentando a saga da catadora de lixo, de sua família, de seus amigos e dos
colegas que vivem no planeta Gramacho.
É inevitável que seu olhar tenha se apaixonado pelo blend de surpreendentes
loucura e lucidez que impregna cada fala, cada gesto e cada mirada de Estamira.
Prado abandonou qualquer esperança de explicação e entrou no mundo subterrâneo
disposto a desaparecer – e a verdade de Estamira e seus satélites é a única
verdade que nos é apresentada. Porque Prado – ao contrário dos astrônomos que
desdenharam o oitavo planeta para uma subcategoria – busca aproximar Estamira
de nosso sistema: Estamira, como todos nós, gravita ao redor do sol.
Estamira é o sol de nossa culpa,
de nossos detritos, daquilo que nós queremos esconder no fim de mundo. Ela rege
a passagem deste para o outro plano. Ela fala a língua dos urubus. Ela diz
morar nas beiradas do encontrável, mas em certo ponto suas retinas alçam vôo:
“Estamira está aqui, está ali, está em todo lugar” – o inferno, ela intui,
podemos tentar escondê-lo, mas tem mil entradas. Algumas são pontos turísticos,
outras são mais disfarçadas, diria Alex Antunes. O inferno está ao nosso alcance, ao
alcance da lata de lixo mais próxima; o inferno o criamos todos os dias. O
inferno está escancarado no filme de Prado, no imundo e granulado
preto&branco de seu mundo “real” ou nas cores saturadas de
seu universo cotidiano e afetivo.
Prisioneira da passagem, Estamira
está e não está – sal da terra, permanece, carontiana, como elo de ligação
entre o físico e o metafísico, o concreto e o escatológico. “Tudo é morte”, ela solta, em
luta aberta contra uma epifânica tempestade, em uma das cenas mais emocionantes
do filme. Na sua revolta contra Deus (“enfia esse Deus no cu!”, ela ordena ao
neto de 10 anos) e suas disputas com o misterioso Trocadilo (“ele é o esperto
ao contrário”), Estamira ecoa as rusgas metafísicas de Hilda Hilst: “Somos iguais à
morte. Ignorados e puros./ E bem depois (o cansaço brotando nas asas)/ seremos
pássaros brancos à procura de um deus.” Quando faz distinção entre “defeito” e
“perturbação” mentais, ela demonstra a mesma autoconsciência de limites de uma Stela do Patrocínio (“Não
trabalho com a inteligência/ Nem com o pensamento/ Mas também não uso a
ignorância”). E o saber de sua imortalidade pode ser partilhado com Maura Lopes Cançado: “O que
me assombra na loucura é a imortalidade. Ou: a eternidade é a loucura. Ser
louco para mim é chegar lá. (…) Acaso alguém tocou o abstrato?”.
Porém, ao contrário dessas três
imensas e sagradas loucas, Estamira não escreve. Estamira tão-somente é. Sua
permanência nessa terceira margem que é o Gramacho – o Hades banhado por
borbulhantes lagos de chorume, o sumo da sucata, nossa última contribuição ao
planeta – é em si sua obra de arte. Seus raciocínios cosmogônicos, parentes do Mundo Racional de Manoel
Jacinto Coelho, são o testemunho não-escrito dessa Diógenes contemporânea. E
ela se recusa a sair do lixão, se recusa a ter uma existência “normal” (“Eu
estou em um outro plano”): como o teimoso Bartleby de Melville, prefere não fazê-lo
– e, não o fazendo, faz-se, é.
Não adianta ocultar sob o capacho
de nossa exuberante civilização: Gramacho, à semelhança do infernal Plutão,
gira ao redor do mesmo sol que banha nossas belas capas de revista. O que não
sabemos, o que esquecemos, obscurecidos pelas aparências, é que só existimos
porque existe o Hades,
só começamos porque o mundo um dia termina, e o sutil e lúcido mecanismo que
governa os sistemas planetários não prescinde da excêntrica órbita de um
planeta sujo, frio e morto. “Eu tenho em minha cabeça um cometa. E você sabe o
que quer dizer cometa? Comandante!”, afirma Estamira. É reconfortante que
Marcos Prado nos tenha lembrado que isso pode ser possível. Que, apesar de
tudo, também existe esta mira da realidade, é reconfortante receber o inferno
em nossa mesa, é bom estar em casa – mesmo estando tão longe.
* Ronaldo Bressane é escritor (Céu de Lúcifer) e redator-chefe da revista
Trip (www.trip.com.br);
seu blog é o Impostor (impostor.wordpress.com).
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