Um camponês narcisista
* Por Marco Albertim
Debruçado sobre a mesa, pareceu que iria chorar. Levantando o rosto de
vez em quando, esfregava o dorso da mão direita em cada canto dos dois olhos.
Podia dar a entender que uma secreção incômoda o inquietasse, e era este o seu
propósito; a catarata no entanto, com traços disformes, cobria os lados de cada
olho. Não o confessava, não depois que o enfarto paralisara-o no lado esquerdo
do corpo; recuperara a mobilidade após exaustivas terapias; recuperara, inda
que dando conta dos setenta e dois anos de vida, nunca mencionados antes do
enfarto; mencionados eram os cinquenta anos de militância política, com
testemunhos de quem, com não menos sacrifícios, dera a vida pela revolução e já
constava da lista de heróis.
- Cincinato, me conte como foi o começo de sua luta.
Os anos não vergaram a vontade de Cincinato. Inda que o corpo, franzino
desde a juventude, se arredondasse na cintura, os olhos davam conta de uma
curiosidade sobre outro tempo; para manter-se como referência viva de episódios
que os mais moços não tiveram a chance de testemunhar. A pele escura se curtira
na testa larga. Os cabelos, igualmente juntos nos pixains pontudos, não se
mexiam mesmo sob a inquietação da testa sulcada, dos cílios escondendo os olhos
nervosos. Talvez usasse uma calça mais ajustada à escassez das pernas, uma
camisa com pano bastante para assegurar a mobilidade à frente de uma assembleia
de camponeses; e não as de agora, com o beiral abaixo dos calcanhares, sumindo
sob a pressão d os sapatos de bico fino; e nada das camisas de hoje, com mangas
abaixo dos cotovelos, sem ser costuradas para tal fim. Cincinato fora camponês
com habilidade para se dissimular entre uma grota e outra, nas matas do Pará;
ou para manter a moenda do Engenho Galileia rodando, ocupado por cortadores de
cana e ex-tropeiros cansados dos cascalhos na piçarra.
- Não, Cincinato. Isso os livros de história já dizem. Quero saber com
quem você conversava nas reuniões, onde se reuniam, como se vestiam, como
faziam para conseguir comida. E como conseguiram escapar das armadilhas da
polícia, dos jagunços...!
Ele comprimiu mais ainda a testa. Dos cantos da boca, não evitou que o
cuspe baboso saísse espremido entre as comissuras dos beiços. Antes de falar,
soltou das narinas calorentas o bodum do cachimbo que sorvera uma hora antes.
Olhou para a parede a sua frente. O retrato de Karl Marx, com barbas e cabelos
em desalinho, incitou-o a dizer sentenças, inda que não dando a cada uma o fato
que servisse de suporte a seu acerto. Podia mirar-se como um comunardo, visto
que trocara o culotte dos banhos de açude pela calça de brim grosso, o mesmo
com que estreara nas assembleias do Galileia.
- Tome um cafezinho, Cincinato. Talvez esquente a sua memória de
revolucionário frio.
Cincinato fugira do Maranhão para o Pará. Assumiu nova identidade para
não ser preso; com outro nome, foi presidente do sindicato rural. Logo
tornou-se conhecido dos jagunços e da polícia. Assim, teve que fugir outra vez.
Sem que soubesse, deixou-se levar por certo infanticídio, porquanto não
conseguiu se lembrar dos nomes de camponeses como ele, ou sob seu mando, seus
pares nas ideias e nas roupas. Feito quem enxerga um letreiro luminoso, repetiu
frases impressas com frequência nas brochuras sobre a história recente.
Referiu-se à reorganização de seu Partido em 1962, ao debate ideológico, como
se ele próprio, protagonista de então, fosse também o teórico em defesa do
conteúdo revolucionário do programa de seu Partido.
- Você conheceu Maurício Grabois pessoalmente, Cincinato?
Não conhecera o velho de rosto comprido, nariz sem curvas sobre o bigode
ralo. Emendou-se confessando, contrafeito, que fora chamado para reorganizar o
Partido por dois outros, não do mesmo porte teórico de Maurício Grabois, mas
que deixaram marcas de sangue. Os dois, acentuou, a mando do velho de rosto
comprido.
- Zaratini foi torturado e fugiu do quartel dos Bombeiros. Capivara foi
assassinado.
Ouvindo a menção de morte, não se deixou crispar por algum resíduo de
lembrança de quem o acompanhara nas estreitas piçarras do Pará. Reiterou a
morte de Capivara, para mostrar-se ileso depois de ter corrido o mesmo risco.
- Não vou escrever sua biografia, Cincinato. Quero informações sobre
como você sobreviveu e com quem conviveu. E não vou citar o seu nome real.
Trata-se de uma narrativa de ficção.
- Não... Pode citar o meu nome. Não me incomodo!
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso
do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as
coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três
livros de contos e um romance.
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