segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Qual o sabor da infância?

* Por Daniel Santos

Dia desses, num condomínio aqui perto de casa, uma menina enfiou a cabecinha entre as grades que separam sua moradia do mundo cruel para espiar outra garota, maltrapilha, a deliciar-se com um pirulito na calçada.

Trocaram olhares, depois sorrisos e disseram qualquer coisa entre si, até que a pobrinha estendeu seu doce à nova amiga. Assim, por alguns minutos, as duas dividiram prazerosamente o regalo que as aproximara.

Lambiam o pirulito com gula e inocente felicidade. Uma respingava a camiseta encardida com gotas de caramelo e a outra sujava o caro vestido de butique sem se dar conta disso, que o prazer costuma abolir distinções.

Mas a farra durou pouco. De uma das varandas do prédio, a mãe da bem-nascida emitiu um berro de reprovação. Logo, a babá acorria para enxotar a maltrapilha e resgatar sua pequerrucha à segurança do lar.

Contra a vontade, à custa de muitas sacudidelas, voltou para a mãe que a costumava privar dos mais inocentes deleites à mesa, de onde se levantava esfaimada, “mas magra, sempre magra” – frisava a senhora.

Em seguida, depois de fazer a criança cuspir e cuspir e cuspir até esquecer o sabor do pirulito, a mulher arrastou a filha a um consultório de renome, a ver se ela contraíra alguma doença; vermes, quem sabe.

Depois dos exames de praxe, o médico demorou-se a limpar os óculos com uma flanelinha amarela para estender o suspense ao máximo e valorizar o diagnóstico. Revelou, então: a garota rebentava de saúde!

Apenas um senão: seus lábios arroxeados. Mas, disso, a mãe sabia a causa. E não se culpava, não. Afinal, fizesse vista grossa e permitisse à filha fartar-se de doces, logo se tornaria uma gorda infeliz, solitária.

Mas também poderia desenvolver outro (e bem pior) tipo de obesidade, se passasse o resto da vida experimentando alimentos, a ver se descobria o sabor da infância que não tivera – advertiu o médico.

A mulher ficou de pensar no assunto, sem bem já não lembrasse o que adocicara sua meninice. Bolo de laranja? Pavê de chocolate? Jujubas? Balinhas de coco? Algodão açucarado? O quê, meu Deus, o quê?

 
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. O sabor da minha infância foi murici. O melhor gosto que existe! Quanto a crônica, uma abordagem feliz e uma denúncia: mesmo entre crianças, é impossível juntar água e óleo, dois mundos opostos.

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