sábado, 15 de dezembro de 2012

Histórias da minha avó – V

* Por Urda Alice Klueger

(Para Emma Katzwinkel Klüger, minha avó)

Não sei muito bem quanto tempo minha avó viveu naquele lugar de Santa Catarina para onde foi quando chegou ao Brasil como imigrante, e onde aconteceu aquele primeiro Natal mágico, com um docinho de Natal para cada criança, buscado a pé a 30 quilômetros de distância por um bisavô que eu tive e que como que se perdeu nas brumas da distância: sei que dele ficou-me esta curtição pelo Natal – o que mais terá ficado? É tão comprido o tempo, e tão poucas as informações!

Lá nesse lugar que me era meio nebuloso minha avó viveu dos sete anos até ser uma mocinha; um dia, veio, com sua família, para Blumenau, não sei bem quando. O que sei é que aos 20 anos ela estava noiva do meu avô Oskar Klueger, e que então respondeu a um anúncio de um jornal, que procurava moças do Sul para trabalhar, e se foi para Santos/SP, trabalhar para uma família inglesa durante seis anos, preparando-se para casar. Desse tempo de Blumenau e de Santos abundam as histórias e há até lindas fotografias onde, fisicamente, ela se parece muito comigo. Seis anos sem ver o noivo! Mas ela voltou para o casamento trazendo todo o enxoval, 150 mil réis de economias, e a riqueza que era uma máquina de costura! Era como ser milionária! Do lado de cá, meu avô, que a esperara, comprara terra e construíra casa onde hoje é o bairro Garcia, em Blumenau – e tudo isto aconteceu antes de 1908, pois em 1909 já nasceu meu tio mais velho, o tio Erich.

E o tempo passou, e muitas coisas aconteceram, e em 1922 nasceu meu pai, e três décadas depois nasci eu, e um dia a minha avó veio morar na nossa casa, e duvido que algum neto prestou tanta atenção, algum dia, às histórias que ela contava, quanto eu prestei! Guardei na minha memória cada nuance, cada detalhe, cada emoção que ela nos passava enquanto comia os ainda translúcidos pepinos novos em fatias fininhas, nas tardes de proximidade de Natal, quando as cigarras rebentavam de tanto cantar! Encantavam-me aqueles lugares meio misteriosos onde ela passara a sua infância, e aos poucos fui aprendendo coisas: o nome da cidade de onde ela veio era Kaunas, na Lituânia – e hoje conheço fotos de Kaunas, através da Internet – e mais tarde conheci Lisboa e outros lugares onde o seu navio passou – só não sabia direito onde era aquele nebuloso lugar onde ela, seus pais e irmãozinhos, viveram tão difícil vida nos seus primeiros anos de Brasil.

Até que ... bem, sempre um dia os milagres acontecem! Eu penso que nunca, ao longo de mais de cem anos,nenhum descendente da minha avó voltou àquele lugar. Mas em 2006, um professor chamado Plauto Mendes entrou em contato comigo para que fosse à sua escola num lugar desconhecido, chamado Rio Rosina. As crianças, lá, tinham lido livros e outros textos meus, e ele promovia o nosso encontro. Então fui, de carona com ele. É meio complicado explicar onde é tal lugar: da cidade de Blumenau a gente se dirige à cidade de Timbó – de lá, vai-se à cidade de Rio dos Cedros. Em Rio dos Cedros começa-se a subir íngreme maciço de altíssimos morros – e desde quando se está embaixo, duas coisas passam a chamar a nossa atenção: grossíssimos tubos de metal canalizam enormes quedas d´água que um dia ali eram livres, e que um governador lá do tempo da minha infância canalizou para transformar sua força em eletricidade, conforme Plauto me explicou, e a estrada.

Depois de muito andar por aí por muitos lugares, principalmente na nossa América dita Latina, eu aprendi a entender como foram feitas muitíssimas das estradas do nosso continente: a principal força utilizada foi pé de índio. Séculos depois das estradas estarem abertas, um e outro engenheiro foi lá, e mandou passar trator, e muitas vezes mandou cobrir com asfalto – mas a máquina primeira que construiu a maioria das nossas estradas foi o pé de índio, que por milênios andou para lá e para cá pelos lugares mais óbvios e mais lógicos, até formar aquelas estradas que hoje a gente se utiliza sem nem pensar no assunto.

Então, enquanto seguia para Rio Rosina, eu ia conversando com Plauto sobre aquela estrada que subia a montanha, tão evidentemente aberta por pé de índio: espremida entre as altas encostas de um lado e um rio do outro, não havia nenhuma outra possibilidade plausível de estar em outro lugar – e nossos irmãos índios, lá no passado, viram tal coisa muito bem vista, e começaram a subir e a descer por aqueles lugares bem onde, depois, os engenheiros concordariam que eram os melhores lugar para se passar.

Montanha subida, desembocamos num lugar parecido com o Paraíso Terrestre – lagos e lagos, água por todos os lados, inúmeras casas de campos de gente rica; as propriedades dos lavradores e de outras gentes, a igreja, a escola João Floriani. A escola era um encanto, cercada de jardins, tudo funcionando como uma máquina bem azeitada, diretora, professores e servidores extremamente simpáticos, sem contar a doçura que eram os alunos, e que eu conheceria logo depois. Fui levada para a cozinha,onde se preparava a merenda escolar e onde um lanche diferenciado me esperava – e lá estava o Bruno!

Agora vai começar a emoção: o Bruno Alexandre Ferrari era um rapaz de vinte e tantos anos e de forte sotaque italiano, e a camaradagem era fácil e boa naquela acolhedora cozinha, como em toda Rio Rosina. Ali por perto estava a Usina Palmeiras, da qual minha avó sempre falava, e então a conversa girou por aquele lado: que um dia a minha avó chegara ao Brasil e viera parar num lugar que talvez pudesse ser ali, ou por ali, e que meu bisavô, no Natal, caminhara 30 quilômetros de ida e outros 30 de volta, para trazer um docinho de Natal para as suas crianças.

- Mas 30 quilômetros daqui é Timbó! – todos afirmavam, e eu cada vez me emocionava mais: então tinha sido a Timbó que ele fora, aquele desconhecido antepassado que decerto me legara tantas coisas? Eu conhecia muito bem Timbó – quantas vezes lá estivera! Sabe-se lá quantas vezes esbarrara nas lembranças do meu bisavô ainda por lá ou entranhadas, ou flutuando – talvez até tivesse pisado em cima, algum dia, sem saber, do seu cansaço da caminhada de 30 quilômetros atrás de alguns docinhos de Natal, pois caminhadas movidas por sonhos, assim, deixam marcas para sempre! De emoção em emoção, ia acompanhando as conversas naquela cozinha, e dava as minhas contribuições: “Minha avó contava de quando os índios fizeram isto, ou aquilo...”

Aquelas histórias da minha avó eu apenas as ouvira da boca dela; nunca, em nenhum lugar, ouvira outra pessoa contar coisas assim, ou lera que alguém tivesse escrito coisas parecidas. Eram histórias particulares da minha avó e minhas, pois penso que os outros que as ouviram não prestaram muita atenção ou já morreram – EU era a herdeira daquelas histórias! E então, ali no aconchego da cozinha daquela escola acolhedora, no maior sotaque italiano, o jovem Bruno Alexandre Ferrari pôs-se também a contar as histórias da minha avó lituana, exatamente as mesmas, tim-tim por tim-tim, detalhe por detalhe, como as ouvira seu Nono[1] contar no passado! Eu chorei. Tinha, enfim, chegado àquele lugar mágico que povoara toda a minha vida, desde a infância! Talvez não fosse exatamente aí em Rio Rosina, mas 5 quilômetros para lá ou para cá – o fato é que fora para ali que os imigrantes lituanos cansados e alquebrados foram levados, no final do século XIX, quando acabaram aportando aqui no Brasil! Eu voltara lá, afinal, descendente deles, descendente das tradições deles, descendente da força que fazia um homem caminhar 60 quilômetros para trazer um docinho de Natal para cada filho! O ciclo se fechava, afinal! Eu estava pisando nas terras encantadas onde minha avó tinha vivido a sua infância! O Natal que eu herdara daqueles meus antepassados agora seria sempre muito mais forte! Como ficar indiferente a uma coisa assim?


* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

Um comentário:

  1. Grandes descobertas e encontros mágicos com o passado, para nunca mais se esquecer. "O acaso é um pequeno milagre".

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