* Por Antônio Adriano de Medeiros
Mal chegara à minha cadeira, enquanto ainda aguardava que o rotundo Cavallo desse a volta a seu largo birô e sentasse primeiro, eis que a porta se abre de repente, sem aviso, e adentra primeiro o conselheiro León Alien Nação, logo seguido por Evangelista Lombroso. Após sentar-se o Presidente, eu o sigo, e também os dois conselheiros, cada um de um lado do grande birô.
- "O que nos tem a dizer o nobre colega?" - pergunta Cavallo, encarando-me com seus olhos de Medusa.
E eu, petrificado, assim expresso-me:
- "Nobre Presidente, o que tenho a dizer é morbidamente importante, e infelizmente caracteriza, a meu ver, infrações graves o suficiente para a cassação do registro de um colega meu de turma, e de especialidade de um dos conselheiros aqui presentes. Refiro-me ao psiquiatra Antônio Cão, que nem sei onde trabalha, mas que vem se comportando de forma que caracteriza gravíssimas infrações ao Código de Ética, além de caracterizar também comportamento psicótico, agravado ainda mais por maus tratos a animais e alguma forma de possessão possivelmente demoníaca."
- "Antônio Cão?" - pergunta Evangelista, surpreso - "Ele é do serviço público, transita bem tanto na área hospitalar como entre os integrantes do Movimento Antimanicomial. Sempre o achei meio suspeito devido a seu envolvimento com o referido Movimento espúrio e esquerdizante, mas os diretores do Colônia me dizem ser tecnicamente capacitado e pessoa confiável, a ponto de verem nele uma espécie de ponte entre as duas alas de nossa cindida saúde mental. Por favor, Hilário, prossiga, pois agora fiquei curioso."
- "Não o via desde que saímos da faculdade, visto que nunca precisei ter ligações com o serviço público, nem me interesso - com o devido respeito - pelas coisas ligadas à área mental, a não ser quando as mesmas ocorrem com meus clientes, ou de alguma forma me envolvem, como está acontecendo agora.
Pois bem: o fato é que, de umas três semanas para cá, tenho encontrado Antônio Cão no zoológico, e conversando com os macacos..."
Meu relato foi subitamente interrompido pela uníssona gargalhada dos três conselheiros, que se entreolharam e emitiram comentários do tipo: "É isso o que dá ser psiquiatra so serviço público estadual", ou "Ele nunca me enganou com aquele seu jeito de filósofo anancástico e dúbio", ou ainda "Psiquiatra é assim mesmo", mas logo se aperceberam de que estavam me deixando encabulado, e, após desculparem-se, pediram-me que continuasse.
- "Senhores, eu tenho nessa pasta de couro de búfalo americano, gravações em que Antônio Cão faz, diante de macacos, comentários deveras desairosos à nossa profissão, e vi com meus próprios olhos uma estranha relação de dominação diabolicamente hipnótica entre Cão e os macacos do zoológico"
Fez-se na sala um silêncio profundo no momento em que pus a pasta sob o birô do Presidente do Conselho. Foi então que, no exato momento em que pegara a primeira fita para ouvirmos, um cão das redondezas começou raivosamente a latir, e Evangelista percebeu que eu estava com medo:
- "Algum problema, Hilário? Prossiga! Estamos prontos a ouvirmos tudo o que tem a nos revelar, e que parece ser coisa muito relevante".
- "Estão ouvindo o cão?"
- "Sim, é da casa do pastor Vigarino de Trouxas, um legítimo dog alemão, cão dos mais confiáveis. Ele sempre emite latidos quando alguém chega lá. Deve ser o carteiro" - disse Cavallo.
- "Mas não é estranho que ele ladre no exato momento em que peguei na primeira fita..."
- "O que é isso, Hilário? - Disse Evangelista, mostrando os dentes, agressivo: - "Não me diga que está pensando que o cão tem visão de Raio X..."
Novamente as risadas zombeteiras infestaram o ar, como um exame de abelhas peçonhentas. Só quando novamente elas pousaram, pacíficas como moscas, foi que eu prossegui:
- "Escutem só o que ele andou dizendo aos macacos, sobre nossa classe!"
Liguei então o gravador com a primeira fita cassete, numerada com o algarismo um, e primeiro se ouviu o canto agourento do Acauã. Em seguida, entrecortado por barulhos urbanos de ônibus e caminhões, e um ou outro som de buzina de automóvel, ouvia-se grande algazarra de macacos selvagens. Vez ou outra o urro de uma fera, o canto ou o grasnar de pássaros ou aves, mas nada de escutarmos a voz humana, que, como num passe de mágica ou fetiçaria, havia desaparecido daquela gravação. Depois de mais de 3 minutos da desarmônica sinfonia urbano-zoológica, eu desliguei o gravador e pus a segunda fita.
Notei que os três se entreolhavam de forma entre preocupada, desesperançada e zombeteira, estranha miscelânea de expressões.
A segunda fita começou com uma espécie de gargalhada de macacos que parecia corresponder às zombarias iniciais dos colegas. Novamente barulhos urbanos, sons de feras, aves e pássaros, e alguns gritos de crianças, faziam uma espécie de fundo musical aos grunhidos selvagens de macacos ora raivosos, ora zombeteiros. E o pior é que isso ocorreu também com a terceira gravação: a voz do maldito Antônio Cão, por interferência magnética provocada inequivocamente por terríveis poderes diabólicos, havia sido como que apagada de todas as gravações.
Quando a porta se abriu repentinamente deixando surgir a rechonchuda e abobalhada figura de Hebe França abraçada a um terrível gato preto que miou após a conselheira gritar "Olha quem chegou!", eu perdi a consciência e caí no chão.
* Escritor
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