sábado, 8 de dezembro de 2012

A recriação da luz

* Por Paulo José Cunha

chegou triste
com olhos velhos
tinha febre frio e medo
um jeito distante
como distante trazia
o corpo (quase arrastado)
foi-se aninhando
pássara assustada
(os olhos velhos velhos)
um soluçar de antigos sofrimentos
lágrimas de paixões nunca esquecidas
homens suados
prazeres
inteiramente só
a cabeça baixa
cabelos caindo no rosto
braços cruzados sobre o peito
e os olhos velhos
falei de barcos e fugas
da atração da morte
e das mulheres esplêndidas
que nunca cruzaram
a esquina do meu coração
tomou leite quente
algum conhaque
depois falou de angústias e traições
e sem saudade (até sorrindo)
lembrou de um passado inesquecível
tinha medo do passado e do presente
(do futuro não falou)

recordou sabores nunca renegados
mas que jamais mataram sua sede

isto tudo falou assim
até que lhe beijasse os olhos
úmidos e velhos
despediu-se com um ar distante
(como se não tivesse chegado)
apenas olhava o sofá a taça vazia o cinzeiro
e nos olhos velhos
havia o pedido
de um instante a mais
então beijou-me
beijou-me um beijo lento
(menos que um beijo,
mais uma procura )
o beijo escorreu da boca
e foi descendo até os pés
e ali
ao som de uma canção antiga
(na certeza de que não iria faltar cigarro)
entre as roupas que foram
lentamente
recobrindo o assoalho da sala
eu vi
nela toda
acender-se uma luz


• Poeta, jornalista, professor e documentarista piauiense, autor dos livros “Salto sem trapézio”, “Perfume de resedá”, “Vermelho, um pessoal garantido” e “Caprichoso, a terra do azul”.

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