segunda-feira, 28 de junho de 2010




Um aboio aveludou a noite do sertão

* Por Eduardo Murta

Ponteiros paquidérmicos, aqueles. Faziam só incendiar ansiedade em Juventina. Ela unhas roídas, suor denunciando ânsias. E nada de o relógio cruzar o meio-dia. Era assim toda terça, em que consumia as tardes em segredos de sacristia. Se embonecava em peruca, laquê, revezava os modelos de anágua. E caprichava no perfume. Padre Euzébio a esperava. Duas taças de vinho à mesa, bombons de cereja. Viúva de aliança, lá amainava calores de amar. As coxas se encontrando num silêncio sacrossanto.

Como discreta entrava, discreta saía. A se desvencilhar de línguas ferinas. Retocava a maquiagem aos moldes clássicos que haviam ficado lá para trás: pó compacto, talquinho-bebê ao pescoço. O rímel invariavelmente refazendo o contorno dos cílios. Porque na glória do prazer, chorara. Como repetisse um ritual, direcionava o ritmo a que o fogaréu varrendo o baixo ventre coincidisse com as badaladas das cinco. Gemia baixinho, cravava o esmalte nas costas do parceiro. E se vigiava para jamais gritar.

O gozo recatado talvez guardasse familiaridade com a atmosfera cerimoniosa do lugar. Conhecera aqueles domínios, se recorda, para lá de seis décadas. Tempo de primeira comunhão. Ela em flor infantil, descobrindo o mundo. E o menino Zizu lhe despertando tantos braseiros, que cultivaria esse querer até que entrassem pela porta principal da igreja, véu e grinalda, casaco emprestado, a que trocassem anéis de compromisso.

Vaqueiro, foi laçá-la entre um e outro lamento de aboio. O sol já derivando à serra, guiando o gado na volta dos pastos. Nem traço de pêlos tinha ao rosto. Passava pela casinha, meio do nada, paredes em tons palha, contornos em azul, e em instantes lá estava a menina. Laços de fita incondicionalmente amarelas, dentição se desenhando à boca. Sorria em espontaneidade brejeira. Ele desassentava o chapéu, trazendo ao peito, numa doce reverência.

Ficavam naquilo. Resumidos a boa tarde, até amanhã, faz calor, vem chuva por aí... Até os encontros de catecismo emprestarem nova carpintaria aos olhares. Veio namorico de praça, veio casamento, vieram filhos de fazer fila – treze. E veio um boi dos bravos. Desgarrado. O chifre trespassando Zizu de costela a costela. Daí emergiria um meio-homem. Babento, desmemoriado. Numa madrugada dessas, beijou mulher e crianças e partiu. Tomou a imensidão da mata, prometendo que encontraria o animal a qualquer custo. Completou anos sem dar notícia.

Foi dado por morto. E no acender de velas no santuário, as chamas iam revelando luto cerrado ao rosto de Juventina, embora renovassem e fortalecessem a esperança de reencontrar Zizu. Lá também conheceu as mãos de Padre Euzébio, novato na paróquia. Nos primeiros anos, toques reconfortantes. Depois, sugestivos. Por fim, sedutores, candidamente acolhidos.

Dali para a penumbra da sacristia foram meses de convencimento. As resistências se quebrando passo a passo. Atravessariam janeiros naqueles sabores de alcova. A ponto de incorporarem rotinas de casal. A implicância sobre o excesso de rapé, a reprimenda pela roupa pouco recatada para a ocasião de missa... Bonito era que tudo desaguava em entrega ainda mais ardente. Num frescor de carinhos e entrecoxas endiabrando as tardes do vilarejo.

Aquela terça-feira, sabe-se lá por quê, soava ímpar a Juventina. Escolhera anágua vermelha. Padre Euzébio inaugurava ceroulões. E ornara as bordas do colchão em ramos de alecrim. O relógio se aproximando das cinco, ela vislumbrou poeirão ao longe. Lembrava estouros de boiada. O volume crescendo, se agigantando em direção ao santuário, sob um barulho avassalador de tropel. Pelo vidro, anônima, conferiu. E um tremor varou-lhe até a alma.

Era Zizu, empunhando sobre a cabeça a carapaça com os chifres do boi que o vazara. Exibia como a um troféu. Juventina, desejos embaralhados, agora sem saber se ia à janela ou se deixava que aqueles acontecimentos ecoassem por todo o sempre em seu coração como um aboio longo, doído. Um lamento triste aveludando as noites de sertão.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

3 comentários:

  1. E agora?
    Resgatar no corpo o fogo de outrora ou
    deixar de lado o prazer incandescente das terças
    feiras?
    Que dilema Eduardo.
    Ótimo texto.
    Beijos

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  2. Maravilha de conto! Vários trechos dígnos, mas destaco: " Daí emergiria um meio-homem. Babento, desmemoriado."
    Sei bem o que é isso. Parabéns!

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  3. Que conto lindo, Murta. Pode figurar entre os melhores contos do país. Você está se tornando um mestre. Parabéns!
    Abraços

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