quarta-feira, 23 de junho de 2010




Sofrer por futebol nunca é demais!

* Por Mara Narciso

A mulher gostava de futebol desde menina, tanto que costumava ouvir jogos num rádio ligado na tomada pendente ao lado da boquilha da lâmpada do teto, no meio da sala. Em cima de um armário, aquilo era uma verdadeira armação. Torcia por um time da cidade, e acompanhou febrilmente a copa do mundo de 1950. No dia fatídico, passou a tarde com o seu tio e a família dele, e após a derrota do Brasil para o Uruguai, foi para sua casa se arrastando, como se o mundo tivesse passado a ser operado em câmera lenta. A energia física tinha desaparecido.

O homem também era louco por futebol, com o detalhe de ser centro-avante, o camisa 10 do time que ela torcia, desde antes de se conhecerem. O grande diferencial dele é que, com 1,68 m era goleador de cabeceios indefensáveis. Não fumava, não bebia. Era um atacante muito bom, e conseguia “furar” vários gols numa única partida.

Casaram-se, e quando os três filhos nasceram, o clima futebolístico permaneceu na casa. Nem a mulher e nem as crianças eram levadas ao estádio, uma prática incomum daquele tempo. O menino bem que tentou jogar, mas era perna de pau. O pai goleador o olhava desanimado. Sem saída, curtia a decepção.

A menina passou a acompanhar o futebol desde que a televisão chegou. Viu a copa de 1970 no México, com direito a emoção em preto em branco, e ao vivo: quanta alegria! Tricampeões! A terceira filha também gostava de futebol.

O Atlético Mineiro era a paixão da casa. Compravam uniformes, bandeira nas cores do time, discos com o hino, cantado aos berros nos dias de jogos, fotos do Galo, e posters dos jogadores. Tudo era colado nas paredes. A turma sabia a escalação do time. E falavam naquele ritmo de locutor esportivo. O som das altas horas era o rádio ligado em jogos de futebol.

Quando adolescentes, os filhos mantiveram a paixão, agora temperada pela leitura da revista Placar, que de foto, só tinha de jogador. Na última página havia a “Camisa Doze”, uma sessão interativa. Numa ocasião, a menina fez versos de amor ao grande time dos mineiros, em parceria com outras meninas da escola. O longo poema foi decorado e declamado umas tantas vezes.

Os filhos adultos, já casados, costumavam se reunir aos domingos à tarde para assistir aos jogos do Atlético na TV. Mas, sem muitos comentários durante os jogos. O hino, na ponta da língua, era colocado no volume máximo, para atormentar os vizinhos torcedores de outro time, antes e após a partida. Quando o Atlético vencia o campeonato, saiam de carro em desfile pela cidade.

Anos depois, uma das filhas, morando em Belo Horizonte, assistiu a vários jogos no Mineirão. Após o expediente, os trabalhadores tomavam o rumo do estádio, comiam alguma coisa, e entravam tranquilamente, acomodando-se nas arquibancadas. Era natural assistir futebol ao vivo.

Na Copa de 1982 os brasileiros viram a formação de uma grande seleção com Zico, Sócrates, Cerezo, Falcão e Júnior, sob a batuta do mineiro Telê Santana. Os jogos aconteciam ao meio dia, na Espanha. Muitas vezes o trânsito emperrava, e no desespero, alguns torcedores eram obrigados a desistir do futebol. Numa determinada vez, dando a volta por detrás do bairro, essa filha chegou a tempo de ver ao jogo Brasil e Argentina. Foi como se alguém tivesse ressuscitado. Que alívio! Isso sim, é que era fanatismo, cegueira, desespero, insensatez: fazer qualquer coisa para assistir a um jogo.

Em todas as copas, o que saia na imprensa era lido em minúcias. Sabia a escalação das principais seleções. Anotava todos os resultados completando diversas tabelas. Leu fascículos de um livro de futebol na Folha de São Paulo, onde se explicitava todas as regras. Decorou algumas, e não apenas a regra três da substituição, mas também a onze, aquela do impedimento.

O Brasil era o único escrete tricampeão do mundo. O jogo da vez era contra a Itália. Havia uma leve algazarra até o jogo começar. Após o apito inicial, silêncio, já que ela gostava de torcer contida em sua mudez. O Brasil precisava do empate. Faltando quinze minutos para o encerramento, Paolo Rossi, o carrasco do Brasil, detonou o sonho brasileiro. Marcou três gols na partida e a Itália venceu por 3 x 2. Pela janela, ouvia-se o silêncio mais ensurdecedor do que qualquer vuvuzela.

O plantão estava à espera. Era preciso voltar ao hospital. Naquela hora, o mundo estava borrado na sua cor chumbo. Morrer seria a anestesia necessária.

Na Avenida Nossa Senhora do Carmo, um jovem enrolado na bandeira nacional sentado no meio fio, chorava alto, podendo ser ouvido lá do outro lado. O corpo enfermo tremia e sensibilizava. Vendo tal cena, o desatino dos desatinos teve lugar. Ela tomou a decisão mais louca que qualquer fanático poderia tomar: nunca mais eu vou sofrer por futebol!

A Itália, por fim, sagrou-se tricampeã. Ela cumpriu a promessa e nunca mais sofreu.

* Médica endocrinologista em Montes Claros, acadêmica do oitavo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

5 comentários:

  1. Aprendi a gostar de futebol depois que me
    "estabeleci" como torcedora do Flamengo.
    Outro time só o da seleção e eu torcia mesmo.
    Lembro-me que minha mãe jogava água na gente
    quando o time perdia...meu Deus.
    Ainda torço, mas sem os rompantes da adolescência.
    Abraços

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  2. Adorei a crônica, Mara. "Ouvia-se o silêncio mais ensurdecedor do que qualquer vuvuzela" está bárbaro! Parabéns!

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  3. Meninas podem gostar de futebol, e entender também.

    Obrigada Núbia, por reforçar as nossas possibilidades de torcedoras que não perdem a ternura, e agradeço a você Sayonara, que me fez sorrir com seu gentil comentário.

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  4. Incrível, heim Mara. Texto de deliciosa leitura. Parabéns por mais esta lavra.

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  5. "Pela janela, ouvia-se o silêncio mais ensurdecedor do que qualquer vuvuzela." Mara, com esta frase você traduziu o que é o verdadeiro sentimento de um país quando é derrotado. Parabéns!Seu texto me fez reviver várias Copas do Mundo a que assisti, torci, vivi, comemorei, chorei.
    Beijos

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