sexta-feira, 23 de março de 2018

Uma história de amor - Antonio Lobo Antunes


Uma história de amor



* Por Antonio Lobo Antunes


Aos treze anos, mais ou menos, apaixonei-me perdidamente por uma menina de onze ou doze, que só via na igreja, eu, menino do coro, lá em cima no altar, ela com a mãe e a tia na assistência. Levava as semanas à espera da hora da missa, a saudade doía-me fisicamente, nunca lhe falei, nunca a vi a menos de vinte ou trinta metros, às vezes estava um menino, primo ou isso, ao seu lado e eu consumido de ciúmes, a sofrer como um cão, parecia-me que de vez em quando ela olhava para mim mas não tinha a certeza, o mais provável era que não me ligasse nenhuma eu que até perfumava com o frasco da minha mãe, eu que até tentava pentear a franja para trás com a escova do meu pai, nunca dei pelo mais pequeno interesse da parte dela, usava meias brancas, usava tranças, não fazia ideia do seu nome, não fazia ideia onde morava, se calhar era casada (há pessoas precoces) e passei para aí um ano inteiro a derreter-me de amor, a pensar nela no elétrico, no liceu, em casa, às vezes de lagriminha a arder-me no canto do olho (a paixão dói para burro).

Até que ela, os pais, uma velha de dezesseis ou dezassete anos, igualzinha à mãe, já de saltos altos, já senhora, que, sei lá porquê, essa sim, parecia olhar-me de vez em quando, sem nenhum interesse em mim. Aliás, desapareceram todos, para outra igreja, para a Mongólia, sei lá e perdi-a definitivamente. Outras pessoas ocuparam o banco dela, velhos, senhoras de preto, meia dúzia de escuteiros, inclusive um ceguinho de bengala que uma velhota amparava. Uma ocasião, no Natal, até um corcunda, palavra, desses a quem apetecia passar a palma na marreca para dar sorte (infelizmente nunca fui capaz de fazer isso, o que, se calhar, explica todos os meus azares) e ainda hoje espero que a menina, com os seus doze anos intactos, me surja de súbito numa esquina, no supermercado, à saída do banco, me dê o braço e me acompanhe até ao sítio onde moro, impacientando-se com a minha demora em encontrar a chave.
É para hoje ou quê?

A bater o bico do sapato no capacho, mirando-me, impaciente, do seu metro e trinta, com uma pulseira de bolinhas de plástico, uma unha roída e um risco de tinta azul na bochecha, a passear no apartamento com ar proprietário, franzindo-se de desgosto para os meus quadros, o do gatinho a sair de uma bota e o das virgens de túnica, aéreas, de cabelo comprido, a dançarem numa orla de bosque, com um fauno a tocar-lhes flauta, eu que até acho este apartamento bonito, agrada-me o candeeiro do teto que imita uma lanterna de locomotiva e a cômoda de torcidos e tremidos com a fotografia da Irene (– Coitada da Irene) no tampo (o que será feito da Irene?) acompanhada por um soldado de barro, a quem falta metade da espingarda, a fazer continência. A menina acabou por sentar-se no sofá de dois lugares a vasculhar as revistas na mesinha de apoio.
Não tens nada que se leia tu?

E desarrumando-as todas (uma delas escorregou para o chão) concluiu com desgosto:
Entreténs-te com porcarias.

A descruzar as pernas e a cruzá-las ao contrário, mostrando-me a crosta de uma feridinha no joelho.
Caí ontem na banheira.

Enquanto explorava o interior de uma narina com o mindinho e avaliando os resultados do exame após várias torções de saca-rolhas e limpando a unha no veludo a informar-me:
Visto de perto és mais feio do que na igreja.

A abrir uma gaveta na esperança de chocolates e a pescar lá de dentro uma lâmpada fundida.
É da tua mesinha de cabeceira, isto?

Que não lhe cabia no bolso do casaco.
Pelo sim pelo não vou levá-la.

E acabou por deitar fora.
Está fundida.

Vendo-a rolar em semicírculo para debaixo do armário enquanto eu apanhava as revistas. O prédio da frente, na janela, afigurou-se-me de súbito feio e triste, com uma senhora de idade na varanda a pendurar fronhas num fio. Toda a minha vida, aliás, me parecia de súbito feia e triste, a começar pela Irene que sempre coxeou um bocadinho, numa vocação de trotinete (pobre Irene).

A menina espiou-me de olhos meio fechados, a avaliar:
És tão velho.

E realmente, aos trinta e dois anos, sou velhíssimo, aposto que a batina vermelha de menino do coro já não me serve, os calções não me servem, de certeza que nada me serve.

A menina para mim:
Como é que te passou pela cabeça que eu podia apaixonar-me e casar contigo, és tão tonto. Eu quieto no meio da sala, de garganta apertada, incapaz de olhá-la, incapaz de dizer fosse o que fosse, vendo-a afastar-se de mim a caminho da porta, a desaparecer no patamar, a descer as escadas a gritar-me, invisível, um:
Palerma.

Que a sereia de uma ambulância, lá em baixo na rua, felizmente amorteceu.

* Escritor e psiquiatra português.



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