Vidas Secas: o humano como última gota
Por Nei Duclós
Não há país em Vidas Secas, há o
inferno. O clima e a geografia aliam-se à opressão econômica para expulsar a
família que busca a sobrevivência na fuga. O último degrau a que desce o grupo
humano é representado pelo sacrifício dos animais domésticos – o gado,
primeiro, depois Baleia, a cadela vítima de um tiro de misericórdia, e
finalmente o papagaio, transformado em refeição. Nada mais existe abaixo das
pessoas. Elas são a última gota do deserto que não leva a nada. Nesse
território varrido pela tragédia, só resta o sol, que engessa o movimento, e o
chão calcinado, que tortura tanto o espaço doméstico quanto a estrada sem
futuro. Metáfora da perdição dos que buscam a sobrevivência no país que não existe,
a narrativa nada oferece a não ser a presença de um homem, uma mulher e uma
criança, condenados por um destino que se expressa por um clarão sem tréguas.
Sopro
Nem a noite vem ao socorro dos
brasileiros perdidos na exclusão absoluta. A luz, a mais intensa que alguém
pode suportar, serve então para definir o contorno de uma caminhada que não
salva os protagonistas, mas produz a revelação de quem assiste. Não é um
processo químico da imagem que surge de um negativo invisível, mas a inoportuna
claridade que se introduz bruscamente na sala escura e queima o filme com as
chamas da perdição. Vidas Secas nos escapa como um segredo que se mantém
intacto, porque nos expusemos demais à verdade, e o que ela produziu não foi
assombro nem desesperança, mas a evidência de que somos feitos daquela terra
que recusa o barro e, portanto, se nega a estruturar a vida para que nela
encontre pouso qualquer sopro de alma imortal. O milagre é que as pessoas que
são oprimidas até a redução absoluta do gesto imóvel animam a consciência como
uma transfiguração. Vemos do que é capaz o que se conhece por gente, quando
nada lhes assiste, nem a mais miserável das misericórdias. Eles insistem no
andar, como se fossem tangidos pelo que encontraram depois que a morte lhes
tolheu o passo. No cruzar desse umbral, eles chegam até nós com reservas de
suor, com palavras obsessivas, com as caras retorcidas por algo que pode se
confundir com determinação, mas que é apenas a coragem de quem sabe que nada
possui, a não ser a vida ressecada pela vastidão da injustiça. Não se trata de
um libelo ou de uma denúncia, mas da queda rumo a uma possibilidade maior do
que qualquer ilusão. Nelson Pereira dos Santos queima o filme para sempre
quando transforma sua saga num encontro entre o conforto do espectador e a
violência do que é exposto. Isso é o que somos, nos diz o Mestre, e iremos
ainda mais fundo na negação. Não há volta que nos redima, não há final de
sessão que nos aliene, não há memória que se apague. Quando as imagens de Vidas
Secas nos perseguem, sabemos que é lá que continuamos a existir, a desafiar o
destino com nossa teimosia.
Traste
A literatura é outra coisa. A aparente
secura de Graciliano Ramos, transposta para o cinema, dispõe do controle da
palavra. O filme é o olhar que não se esconde. Vidas Secas é o filme que nos
recusamos a ver de frente, não porque a luz nos cegue, mas porque a luz nos
flagra. Somos trespassados pelo mistério da nossa imobilidade e só o filme
fala, como um eremita iluminado pela dor. Descobrimos nesse instante que
nenhuma palavra irá apagar a revelação e nem mesmo se inundarmos o deserto com
todas as águas que dispomos poderemos fugir do presente indissolúvel desse
filme magistral: a jóia indestrutível de uma porta que se abre como um dilúvio
sem água nem sangue. É quando vemos o humano reduzido à sua essência: o
abandono num universo hostil, a esperança evaporada como a miragem que vira
areia, o transtorno da falta de saídas, a loucura de estar vivo, mesmo que tudo
conspire para o sumiço do que chamamos vida. Adeus, inocência perdida. Vidas
Secas veio para ficar. Somos Baleia diante do fuzil, somos o delírio embaixo do
arbusto de espinhos, somos o caminhar em direção ao nada. Nada nos livra dessa
herança, a não ser a vontade de ver o que o filme nos entrega: o real como uma
fantasmagoria, o pesadelo como um passeio no caos, a responsabilidade deixada
para trás como um traste na poeira de um caminho sem volta. Somos a última
gota, na paisagem que nos nega.
*
Autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua” (1979) e “No
mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004). Jornalista
desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é
editor-executivo de duas revistas.
Bom demais! Um verdadeiro tratado sobre "Vidas Secas", impecável, parabéns amigo de letras!!
ResponderExcluirBom demais! Um verdadeiro tratado sobre "Vidas Secas", impecável, parabéns amigo de letras!!
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