As heróicas filósofas medievais
A Idade Média – período demarcado pelos historiadores como
tendo começado no século V e terminado no século XV, com o chamado Renascimento
– é considerado, quase que por unanimidade, como uma fase de estagnação
artística e cultural, sobretudo no Ocidente. A Filosofia, por conseqüência,
igualmente se estagnou. Nesses mil anos de estagnação intelectual, prevaleceram
duas correntes filosóficas distintas, posto que com o mesmo objetivo: a
patrística e a escolástica, ambas baseadas em concepções religiosas, que
diferiam, somente, quanto à abordagem. Houvesse liberdade de pensamento, não
haveria problema. Todavia, não havia. Tudo o que fosse minimamente contrário
aos dogmas da Igreja era considerado heresia. Essa era tida como o maior dos “crimes”
e punida implacavelmente. E ninguém, por conseqüência, se atrevia a pensar de
forma divergente do estabelecido por Roma, para não terminar seus dias numa
masmorra ou, pior, para não ser incinerado em alguma das tantas fogueiras da
Inquisição.
Se nesse período houve poucos filósofos masculinos sem algum
tipo de vínculo com a Igreja (a maioria era constituída de sacerdotes
católicos), imaginem filósofas!!! Às mulheres não era dado o direito de sequer
pensar, quanto mais de “filosofar”. Era-lhes determinado papel específico e imutável, de
procriadoras e de virtuosas donas de casa, que deviam irrestrita obediência e
estrita subserviência ao pai, ou aos irmãos homens na ausência desses ou ao
marido quando casadas. Seu pensamento, necessariamente, tinha que ser o do
tutor, fosse ele quem fosse. Houve filósofas nesse longuíssimo período de
trevas, que parecia fadado a nunca acabar? Sim, houve, posto que escassíssimas.
Minha fonte de pesquisas, a enciclopédia eletrônica Wikipédia, lista, por
exemplo, somente cinco delas, sendo quatro européias e uma indiana, embora deva
ter havido algumas outras. Quantas? Sabe-se lá!
A filósofa orienta, no caso a indiana, mencionada é Akka
Mahadevi, que viveu entre 1130 e 1160 d.C. Em seus 30 anos de vida, deu
importante contribuição para a Literatura Kannada Bakhti, sobretudo como
poetisa, cuja poesia era didática. Foi ativa defensora das causas femininas,
buscando o bem-estar das mulheres. Participou de grupos de estudo de Filosofia,
aos quais deu relevante contribuição. Akka não é seu verdadeiro nome, mas um
título honorífico de excelência, que lhe foi dado em virtude da relevância da
sua obra.
Das quatro filósofas medievais européias, citadas pela
Wikipédia, três tiveram estreita ligação com a Igreja, passando grande parte de
suas vidas em conventos e respeitando, portanto, os dogmas religiosos vigentes
em seu pensamento filosófico. Apenas a quarta foi uma “rebelde”, e tão notável,
que suas idéias sobrevivem ainda hoje e sua obra pode ser encontrada no Brasil,
traduzida que foi para o português. A primeira dessas mulheres foi a alemã
Hildegarda de Bingen, que viveu entre 1098 e 1179. Ficou conhecida como
terapeuta e visionária. Legou vasta obra de ciência natural, de Biologia e
Botânica e de Astronomia e Medicina. Fundou, em 1165, um monastério beneditino.
Seus escritos místicos, teológicos e filosóficos tiveram grande influência do
pensamento platônico.
A segunda filósofa medieval citada pela Wikipédia é uma
figura conhecidíssima na Literatura. Trata-se da francesa Heloísa de Paráclito,
que viveu entre 1101 e 1164. O curioso a seu respeito é o fato dela ser
considerada uma espécie de “Julieta”, muito antes de William Shakespeare haver
escrito sua famosa peça envolvendo essa trágica personagem. Heloisa foi abadessa
do convento de Paráclito, fundado pelo filósofo, e seu mestre, Pedro Abelardo.
Ocorre que professor e aluna se apaixonaram, à revelia do tio dela, que era seu
tutor e homem muito poderoso na corte. O relacionamento do casal, a princípio
só platônico, descambou para uma paixão carnal, completa, absoluta e total, que
resultou, como seria de se esperar, na gravidez dela. Abelardo e Heloísa
casaram-se, e tudo poderia acabar bem se.... Bem, o tio poderoso não se
conformou com o casamento e pagou alguns homens para que castrassem o infeliz
amante. O casal foi separado e nunca mais se encontrou. Esse caso está em minha
pauta, para tratar dele especificamente, em ocasião propícia. A longa
correspondência do casal, que documenta sua infeliz paixão, que não esfriou nem
mesmo com a separação, integra um livro famoso, traduzido para o português,
bastante conhecido pelos estudiosos de Literatura. Em termos de Filosofia,
Heloísa escreveu, ainda, um texto chamado “Problemata”.
Outra filósofa medieval foi uma mulher devota e piedosa,
canonizada pela Igreja Católica. Ou seja, foi Santa Catilina (alguns grafam
Catarina) de Siena. Viveu entre 1347 e 1380, em Siena, na Itália. Liderou uma
comunidade de homens e mulheres e é considerada a última reformadora religiosa
do período medieval. Filósofa da corrente escolástica, escreveu “Diálogo da
Doutrina Divina”. A ela são atribuídos vários milagres. Catilina (cujo nome
significa “Pura”), foi canonizada, em 1461, pelo papa Pio II e, em 1970, o papa
Paulo VI declarou-a Doutora da Igreja.
Finalmente, a última filósofa medieval, citada pela
Wikipédia, e a única da relação sem nenhum vínculo com a religião, é Cristina
de Pizan. Ela nasceu em 1365 na Itália, mas mudou-se com a família, quando tinha
apenas quatro anos de idade, para Paris, onde morreu, em 1431, e adotou a
cidadania francesa. É considerada a primeira escritora profissional da
Literatura mundial. Seu livro mais famoso, escrito em 1405, foi “A cidade das
mulheres”, traduzido para o português e encontrável (suponho) em algum dos
tantos sebos que há por aí. Foi uma figura tão fascinante, que também pautei
comentários específicos abordando sua vida e sua obra. Cristina foi uma “rebelde”
na mais estrita conotação de rebeldia. Entre outras coisas, questionou a
autoridade masculina dos grandes pensadores e poetas que contribuíram para a
tradição misógina e, corajosamente, fez frente às acusações e insultos às
mulheres em seu tempo (em muitos círculos, estes ocorrem ainda hoje, posto que
de maneira dissimulada). E isso, em plena Idade Média!!!! Foi, sem dúvida, uma
grande figura humana e lúcida intelectual e não estranho nem um pouco o fato da
sua obra haver resistido ao tempo e ao esquecimento.
Boa leitura.
O Editor.
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Inacreditáveis mulheres!
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