O fosso intransponível
O lingüista, orientalista e mitólogo alemão do século XIX,
Friedrich Max Müller, concluiu, em um de seus tantos estudos, que “a linguagem
é o fosso intransponível que separa o homem do animal”. Concordo. Várias outras
diferenças (posto que não todas) podem ser superadas. Mas a impossibilidade de
expressão inteligente e coerente dos animais é insuperável, na comparação com o
Homo Sapiens. É voz corrente que os demais seres vivos que habitam o Planeta
não têm consciência do que são e de onde estão. Vivem (ou vegetam) orientados
exclusivamente por instintos. Não contam, portanto, com nenhum tipo de raciocínio.
Será? Tenho minhas dúvidas. Como ter certeza que os animais não pensam? Duvido
que alguém a tenha. Sua carência (suponho) não é de pensamentos. O que eles não
têm, na minha humilde opinião, é linguagem para expressar o que “pensam”.
Óbvio que não estou querendo encontrar alhures um “genial”
macaco com a argúcia de um Einstein, nem um golfinho com o raciocínio de Newton
e muito menos um cão com a profundidade de idéias de Descartes. Não é isso. Esses bichos, claro, não existem,
a não ser na imaginação de alguns ficcionistas. Se algum animal realmente “pensar”
(o que intuo que de fato ocorra) seus pensamentos, com absoluta certeza, serão
rústicos e primaríssimos. Suponhamos, porém, que os seres que consideramos
irracionais tenham, mesmo que de forma reduzidíssima, algo mais do que meros
instintos. Ainda assim, carecerão de algo que temos de sobra e de cujo
potencial nem sempre fazemos bom uso: a palavra. É nela que reside nosso
verdadeiro poder e não propriamente no raciocínio (ou não “apenas” nele). Ele
está, de fato, na possibilidade de podermos comunicar aos outros, de forma
coerente e compreensível, nossos pensamentos, sentimentos e observações. E,
claro, de entender essas mesmas coisas quando comunicadas por nossos
semelhantes.
É mister observar, todavia, que a palavra tanto constrói,
quanto destrói. Eleva e rebaixa. Traz alegria e também tristeza, ira, inquietação
e medo. Depende de quando, como, por quem e a quem é pronunciada. O humorista norte-americano Leo
Rosten definiu, com a precisão que raros filósofos já conseguiram, a
importância e o poder que essa nossa habilidade de comunicação nos dá. Afirmou,
em entrevista que concedeu há uns 60 anos, à revista “Look”: “Vivemos por
palavras: amor, verdade, Deus. Lutamos por palavras: liberdade, pátria, fama.
Morremos por palavras: fortuna, glória, honra. Elas dão ao nosso espírito e ao
nosso coração o dom inestimável da expressão articulada: desde ‘mamãe’ a ‘infinito’.
E os homens que realmente moldam os nossos destinos, os gigantes que nos
ensinam, inspiram e conduzem a feitos imortais, são aqueles que usam as
palavras com clareza, grandeza e paixão: Sócrates, Jesus, Lutero, Lincoln,
Churchill”. Como se vê, é um primor de declaração e não de um filósofo
reputado, mas de um humorista.
É através de palavras que alguns resquícios da história das
civilizações sobreviveram e chegaram até nós, fragmentos estes de fatos e de feitos
ocorridos antes da invenção da escrita. Muitíssima coisa, obviamente, se
perdeu, porquanto os relatos dependiam da memória dos que tomavam ciência deles
e os transmitiam às novas gerações. Quanto foi perdido? Jamais se saberá! Tenho
certeza que foi muito, muitíssimo! E do que restou, parcela considerável se
deturpou, também, já que, como a experiência tem comprovado fartamente, “quem
conta um conto, sempre acrescenta um ponto”. Vai daí... As palavras são
instrumentos de transmissão de experiências, descobertas e conceitos fundamentais
do homem. Através delas, aprendemos lições imprescindíveis. Vislumbramos tanto
a beleza, quanto o horror.
Dia desses, topei, por acaso, em meu caótico, posto que
vasto arquivo, com fragmento do discurso fúnebre que o padre Pedro Gomes de
Camargo proferiu, em 15 de novembro de 1834, diante do caixão do regente do
Império, Diogo Antonio Feijó, durante seu sepultamento na igreja do convento de
Nossa Senhora do Monte do Carmo, em São Paulo. Trata-se de peça oratória
notável, que não merece ser esquecida. Transcrevo o trecho abaixo, para
encerrar estas descompromissadas reflexões, pelo tanto de verdade que encerra: “O
que é o homem? Um meio ente, um ser estropiado posto entre o nada e o túmulo.
Desabrocha como a débil flor no orvalho matutino, mas apenas o astro do dia
dardeja seus raios, murcha, definha e seca. É a sombra fugitiva que não
permanece no mesmo estado. É a água que corre na terra para não mais voltar”.
Retórica à parte, é incontestável verdade. Palavras... Sublimes palavras...
Fosso intransponível entre o homem e todos os outros animais.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Então o homem é um ser estropiado entre o nada e o túmulo... Somos ainda menos do que isso. Somos cobaias de Deus, caso ele exista.
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