Fernando Pessoa e a mudança social
* Por
Marcos Almir Madeira
Fernando Pessoa foi o
mais inventivo dos poetas - o mais pessoal. Talvez o mais excitante. Cultivou o
paradoxo, não apenas com engenho, senão também com avidez, a tal ponto que
parecia divertir-se sensualmente com ele. Tornou-se como poeta e homem de
pensamento, como esteta renovador e filósofo inquieto, um dos talentos mais
provocantes deste século; positivamente, uma organização mental que atingiu os
mais altos níveis de singularidade e arrojo, para não dizer de audácia, às
vezes a ferver de irreverência, incômoda para muitos, mas construtiva para
todos; audácia estimulante de todas as façanhas do espírito, de todas as
peripécias da inteligência de indivíduos e de grupos, à espera da mensagem
diferente, nova, nervosa. A esses, principalmente a esses, foi que levou o seu
aviso, - não apelos, que não estavam na sua índole, mas advertências, senão
mesmo objurgatórias, a faiscarem notadamente na obra em prosa. Nesse campo da
sua semeadura e da sua colheita, a visão social propriamente dita manifesta-se
numa espécie de sentido ou consciência da história.
Vistos a essa luz,
seus achados ou registros de interesse sociológico são tanto mais consistentes
quanto mais ele os condiciona à pressão dos agentes culturais, em termos
precisos de tempo e meio. Quando nos dá o traçado de uma Sociologia literária,1
é para ponderar, por outras palavras, que a poesia culta escapa a critérios de
individualidade e popularidade; está vinculada ao sistema de valores da época.
É evidente, aí, a convergência para os esquemas conceituais do culturalismo
germânico, só podado em suas demasias pela vocação de equilíbrio de certos
expoentes da sociologia francesa. Mas isto não é o que agora importa; o que
avulta é mais que a visão: é a antevisão do poeta, ao escrever nos idos de
1914, quando estava no auge a exaltação do individualismo, a que opunha uma
concepção nitidamente social do fato literário. O que ele via eram climas de
cultura no fundo do tempo, a se constituírem em explicação final para criação
literária. Uma confirmação disso está, por exemplo, na sua observação de que o
Infante D. Henrique foi o "perfeito tipo de sonhador"... porque
"viveu no tempo em que se podia sonhar".2
Em 1916, tratando de
arte moderna, adverte a sociedade de então, baseando-se nos dados da realidade
social ateniense. Para ele, corria a civilização "o risco de ficar
submersa como a Grécia sob a extensão da democracia ou então de ficar como
Roma... nas mãos... de grupos financeiros sem pátria, sem lar na inteligência,
sem escrúpulos intelectuais"...3
Retomava, naquela
altura, o conceito de que a arte é feita para o povo. Refugava largamente a
tese ou o pressuposto; pressuposto que vai sendo impugnado em centros cultos do
mundo de nossos dias, mesmo por estudiosos que não se alistaram entre simples
conservadores e reacionários integrais.
Sobre Portugal entre o
passado e o futuro,4 a visão social do escritor não chega a revelar um atitude
de auto-flagelação, mas o seu pessimismo é irônico. Conclui que a crise
portuguesa "provém, essencialmente, do excesso de civilização das
incivilizáveis". Esta reflexão encontra desdobramento natural na conclusão
de que o povo português é fundamentalmente cosmopolita ou de que "nunca um
verdadeiro português foi português - porque foi sempre tudo".
É interessante
assinalar que nas suas meditações sociológicas em torno da religião ou da fé,
Fernando Pessoa já não é um crítico da linha pluralista, como foi ao traçar o
perfil do povo português; povo que acabava sendo nada, exatamente porque foi
sempre tudo.
Não. No misterioso
domínio da religião, a visão social lhe apontava os rumos do ecletismo de
concepção e de ação, de tal modo que se torna, entre 1916 e 1923, um ardoroso
adepto do que hoje recebe o nome ecumenismo.
Quem, que seja
português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de
uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza
estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos,
todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os
portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um
único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistamos já o Mar: resta que
conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os
Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são
portugueses. Ser tudo de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em
faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo
Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.5
Veja-se agora a
conceituação de provincianismo:6 "Consiste em pertencer a uma civilização
sem tomar parte no desenvolvimento superior dela - em segui-la, pois, mimeticamente."
Fernando identifica na atitude de pasmo ou, por bem dizer, de basbaque ante o
progresso, a característica mais viva do provinciano; e argumenta com o fato de
que "os civilizados promovem o desenvolvimento, criam a moda, criam a modernidade;
por isso não lhes atribuem importância maior. Quem não produz é que admira a
produção". E é esta, lembra o poeta com agudeza, uma das explicações do
socialismo. Eça de Queirós, para ele, é um flagrante exemplo de provincianismo.
E acrescenta redondamente: "Foi o escritor português que mais se preocupou
em ser civilizado."
Um outro ponto de
afirmação doutrinária que devo destacar coincide com as idéias básicas de um
emérito pensador social brasileiro: Alberto Torres. Refiro-me a idéias em torno
da posição nacionalista. Torres considerava o povo brasileiro, mas notadamente
seus grupos de elite, "alienados de espirito e de caráter". A crítica
social de Fernando Pessoa tem outro revestimento literário, é vazada numa
espécie de ironia patriótica, mas ajusta-se ao pensamento do doutrinador
fluminense. "Estamos tão desnacionalizados - denuncia o líder do Orfeu -
que devemos estar renascendo. Para os outros povos, na realidade eles próprios,
o desnacionalizar-se é o perder-se. Para nós que não somos nacionais, o desnacionalizar-se
é o encontrar-se."
Nas suas considerações
sobre o patriotismo localista - ou melhor, sobre o regionalismo - o poeta
filósofo antecipa-se a uma concepção dinâmica da cidadania e do amor à terra,
concepção oposta à do patriotismo apenas contemplativo, cândido ou ufanista. A
visão estreita do regionalismo, creio até que o irritava. Não terá sido por
outra razão que escreveu: "Amar a nossa terra não é gostar de nosso
quintal. O bom regionalismo é amá-lo por estar ele na Europa. Mas quando chego
a este regionalismo sou já português e já não penso no meu quintal."8
Em assunto bem outro,
recordo agora certo libelo: aquele em que poeta resume suas idéias sobre o
comunismo.
Ao contrário do
catolicismo não tem uma doutrina. Enganam-se os que supõem que ele a tem. O
catolicismo é um sistema dogmático perfeitamente definido e compreensível, quer
teologicamente, quer sociologicamente. O comunismo não é um sistema: é um
dogmatismo sem sistema - o dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução.
... inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme
nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós.
O comunismo não é uma
doutrina porque é uma antidoutrina, ou uma contradoutrina. Tudo quanto o homem
tem. conquistado até hoje, de espiritualidade moral e mental - isto é de
civilização e de cultura -, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que
não tem.9
Que me permitam
assinalar uma coincidência, embora incorrendo em autocitação. Há mais ou menos
quatro décadas, publiquei algumas reflexões sobre o comunismo. Foi quando me
correu sustentar que o marxismo-leninismo não perfaz a rigor uma doutrina,
exatamente porque a sua prédica, feita num clamor de apelo, deriva de um estado
de espírito e não de um gesto ou uma opção do espírito; muito menos resulta de
uma definição da inteligência trabalhada pela reflexão. É um incitamento, um
frêmito, uma mensagem a instintos insatisfeitos. Não é o raciocínio político mas
o protesto que se exaure em si mesmo. A bem pensar, exerce uma função
parasitária, nutrindo-se de circunstâncias anômalas, erigindo em regra a
própria contingência. Vale-se da miséria, alimenta-se da própria fome, compondo
o paradoxo tragicômico. É um equívoco do sofrimento, uma congestão da inveja,
uma corruptela do espírito de justiça, um código de vingança, ou uma vingança a
um só tempo homicida e suicida. Tudo isto será o comunismo. Doutrina é outra
coisa.
Ainda uma vez lhes
peço: perdoem que me esteja a citar. Mas aconteceu que vendo agora o meu
encontro de idéias com o Fernando de todos nós, não pude resistir à tentação de
sublinhar a coincidência, para pôr em festa minha vaidadezinha tropical...
Sobre a ilusão
política das grandes manifestações populares medite-se nestas palavras de
realidade transparente:
Nisto de manifestações
populares, o mais difícil e interpretá-las. Em geral, quem a elas assiste ou
sabe delas ingenuamente, as interpreta pelos fatos como se deram. Ora, nada se
pode interpretar pelos fatos como se deram. Nada é como se dá. Temos que
alterar os fatos, tais como se deram, para poder perceber o que realmente se
deu. É costume dizer-se que contra fatos não há argumentos. Ora, só contra
fatos é que há argumentos. Os argumentos são, quase sempre, mais verdadeiros do
que os fatos. A lógica é o nosso critério de verdade, e é nos argumentos, e não
nos fatos, que pode haver lógica10
E aqui retomo, para
concluir, o argumento central deste pequeno estudo: argumento de que a visão
social de Fernando Pessoa resulta, predominantemente, da agudeza com que ele
trabalha o fato histórico, buscando, no caso específico de Portugal, a
explicação de um certo presente pela compreensão de um certo passado.
Observem-se no capítulo "Idéias políticas aplicadas ao caso
português", da coletânea em prosa, estas mostras do seu pensamento
sociológico:
Onde quer que se
coloque o início da nossa decadência - da decadência resultante do formidável
esforço com que realizamos as descobertas e as conquistas -, aí se deve colocar
o início da grande ruptura de equilíbrio, que se deu na vida nacional. Com a
dispersão, por todo o mundo, e a morte em tantos combates, precisamente
daqueles elementos que criavam o nosso progresso, o nosso pequeno povo foi
pouco a pouco ficando reduzido aos elementos apegados ao solo, aos que a
aventura não tentava, a quantos representavam as forças que, em uma sociedade,
instintivamente reagem contra todo o avanço.
... No caso do
superconservantismo, o remédio a aplicar tem de ser um transformador mental,
criador de interesse e energia, e, ao mesmo tempo, uma cura para o atraso da
nação. Ora, há só um gênero de transformação, aplicável a uma nação inteira, e
pela qual se lhe avive o espírito e se lhe desperte interesse e vontade: é uma
transformação profissional, e, como se trata de um país atrasado, e todos os
países atrasados são predominantemente agrícolas, é evidente que a única
transformação profissional a fazer, e que preenche todas as condições exigidas,
é a industrialização sistemática do país.
Portugal precisa dum
indisciplinador. Todos os indisciplinadores que temos tido, ou que temos
querido ter, nos tem falhado. Como não acontecer assim, se é da nossa raça que
eles saem? As poucas figuras que de vez em quando têm surgido na nossa vida
política com aproveitáveis qualidades de perturbadores fracassam logo, traem
logo a sua missão. Qual é a primeira coisa que fazem? Organizam um partido...
Caem na disciplina por uma fatalidade ancestral. Trabalhemos ao menos - nós, os
novos - por perturbar as almas, por desorientar os espíritos.11
No auge do paradoxo,
que era o seu clima (ainda que paradoxo às vezes aparente) todos sabemos o que
pretendia o poeta pensador com as suas tiradas borbulhantes e excentricidades
conceituosas, quentes, buliçosas. Toda a sua ânsia era sacudir a árvore,
replantar Portugal, mudá-lo, transformá-lo revolver todo o
"quintal"... E assim se explica que tenha advertido maciçamente, na
concisão de três palavras: "Tudo é mudança."
Aí está. Na brevidade
do conceito, a atualidade do escritor. Quem lhe negaria uma perfeita integração
no que tem de mais palpitante, em nossos dias, a compreensão dinâmica dos fatos
e processos sociais? Basta conferir suas três palavras sociais? Basta conferir
suas três palavras - Tudo é mudança - com o mundo das realidades que nos cercam
e desafiam no quotidiano da vida de hoje.
E não faltaria ao
excelente inquieto o aval de um poeta em prosa: Maeterlinck. Pois não estava
nele a conclusão de que própria ciência é um "conjunto de verdades provisórias"?...
Palestra no Liceu
Literário Português, em 28.3.86, no Rio de Janeiro.
1. Fernando Pessoa -
Obras em prosa. Rio de Janeiro, GB, Companhia José Aguilar Editora, 1974, pág.
296.
2. Ob. cit., pág. 298.
3. Ob. cit., pág. 299.
4. Ob. cit., pág. 329.
5. Ob. cit., pág. 334.
6. Ob. cit., págs. 336
e 337.
7. Ob. cit., pág. 330.
8. Ob. cit., pág. 331.
9. Ob. cit., pág. 566.
10. Ob. cit., pág.
582.
11. Ob. cit., pág.
596.
(Atualidade política
de três poetas, 1988).
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