domingo, 10 de fevereiro de 2013


O fogão

* Por Marcos Alves

Ele ganhou o fogão e saiu com aquilo no carrinho. Desceu a ladeira com cuidado e mais de uma vez parou para olhar o presente. Na verdade uma troca feliz. Chegara um pouquinho atrasado para buscar a tralha combinada e outro catador de lixo levou. Tinha escutado bem claro. Um forno de microondas queimado. Foi o que o ‘patrão’ tinha falado. Mas ao chegar o forno antes dele tinham carregado. O ‘patrão” com pena, lhe deu então o fogão que estava encostado. E que ainda funcionava.

Os pés doendo de tanto andar não atrapalharam. O carrinho era bom, de madeira maciça. Tinha freios dianteiros para ajudar na descida. Refletores de luz sinalizavam sua presença à noite, tudo certo. E como se fosse um troféu levava o fogão usado. ‘Nem vou mais catar papel hoje”, pensou, fazendo as contas e percebendo logo a vantagem financeira do fogão em relação ao que arrecadaria com a venda do material recolhido em um dia inteiro de trabalho. Escapava-lhe a idéia do conforto de trocar o velho fogão de duas bocas que usava em casa, já bem gasto - como ele próprio dissera, por um maior e em ótimo estado.

Por isso mesmo ignorava por completo o bem que faria à companheira. Àquela altura, ela começava a preparar o almoço em casa. Comeriam mandioca cozida. O barulho da panela de pressão preenchia a simplicidade da moradia de dois cômodos. A um canto, perto da janela que dá para os fundos da casa, o berço semi-iluminado.

A caminho de casa, o pai da criança por um instante teve medo. “Os caras do depósito vão querer pra eles, tudo eles pegam, dizem que é bom pra vender, que é deles. Mas esse é meu” – e riu nervoso. No fundo sabia que, se cismassem mesmo, lhe tomariam o fogão. Resolveu andar os 4 quilômetros para deixar primeiro o fogão em casa.

Assim foi feito. Mal explicando para a mulher como conseguira aquilo, apressou-se em descer o fogão. Ela soltou um grito de felicidade. Deu-lhe um beijo e depois lançou um olhar de carinho que há tempos ele não sentia. Milésimos de segundo de ternura nessa vida sofrida. Sensações que foram brotando assim, por um fogão.

Por um instante a patroa pensou no que era o conforto. Em como seria ter uma cozinha de verdade - nem precisava ser daquelas de revista, que costuma folhear enquanto espera o mais novo dormir sob a luz intermitente da lamparina. Noites de vigília. Vida demorada, consumida aos bocados.

Havia 3 meses tinham se mudado para aquele barraco de dois cômodos. Conheceram-se anos atrás, na rua, catando papel, vivendo embaixo de viaduto. Tinham conseguido segurar a barra do álcool, da melancolia, da loucura. O fogão de duas bocas por testemunha.

“Não tenho vergonha, vergonha é roubar sem poder carregar”, ela costumava dizer. Naquele exato momento, o companheiro pareceu notar nela essa expressão de descontentamento. Mesmo com o fogão branquinho ali, que carregou por subidas e descidas. E ainda teve que defender dos espertos do depósito.  Sentiu uma mistura de ciúme com impotência.

Perguntou a ela se era aquilo mesmo que queria, se já não era a hora de cada um ir pro seu lado. “Vida besta”, resmungou, os olhos marejados. Ela pôs a mão na boca dele, olhou bem nos olhos do companheiro e disse que não era hora de brigar nem remoer coisa da vida. Juntos, prepararam o almoço e depois comeram se permitindo brincar à mesa.

* Marcos Alves é jornalista e diretor de vídeos. Textos para Impressos, eletrônicos e também para acordar, dar voz à alma. Foi repórter do impresso “O Tempo”, em Belo Horizonte. Em 2003, uma pausa das redações, vieram os trabalhos independentes, a maioria em vídeo. Bom para abrir o leque. De volta ao trecho, foi Editor de texto na TV Riosul em Resende/RJ. É formado em Jornalismo pela Fafi-BH, atual UNI-BH, em Belo Horizonte.

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