O fogão
* Por Marcos Alves
Ele ganhou o fogão e saiu com aquilo no carrinho.
Desceu a ladeira com cuidado e mais de uma vez parou para olhar o presente. Na
verdade uma troca feliz. Chegara um pouquinho atrasado para buscar a tralha
combinada e outro catador de lixo levou. Tinha escutado bem claro. Um forno de
microondas queimado. Foi o que o ‘patrão’ tinha falado. Mas ao chegar o forno
antes dele tinham carregado. O ‘patrão” com pena, lhe deu então o fogão que
estava encostado. E que ainda funcionava.
Os pés doendo de tanto andar não atrapalharam. O
carrinho era bom, de madeira maciça. Tinha freios dianteiros para ajudar na
descida. Refletores de luz sinalizavam sua presença à noite, tudo certo. E como
se fosse um troféu levava o fogão usado. ‘Nem vou mais catar papel hoje”,
pensou, fazendo as contas e percebendo logo a vantagem financeira do fogão em
relação ao que arrecadaria com a venda do material recolhido em um dia inteiro
de trabalho. Escapava-lhe a idéia do conforto de trocar o velho fogão de duas
bocas que usava em casa, já bem gasto - como ele próprio dissera, por um maior
e em ótimo estado.
Por isso mesmo ignorava por completo o bem que faria à
companheira. Àquela altura, ela começava a preparar o almoço em casa. Comeriam
mandioca cozida. O barulho da panela de pressão preenchia a simplicidade da
moradia de dois cômodos. A um canto, perto da janela que dá para os fundos da
casa, o berço semi-iluminado.
A caminho de casa, o pai da criança por um instante
teve medo. “Os caras do depósito vão querer pra eles, tudo eles pegam, dizem
que é bom pra vender, que é deles. Mas esse é meu” – e riu nervoso. No fundo
sabia que, se cismassem mesmo, lhe tomariam o fogão. Resolveu andar os 4 quilômetros para
deixar primeiro o fogão em casa.
Assim foi feito. Mal explicando para a mulher como
conseguira aquilo, apressou-se em descer o fogão. Ela soltou um grito de
felicidade. Deu-lhe um beijo e depois lançou um olhar de carinho que há tempos
ele não sentia. Milésimos de segundo de ternura nessa vida sofrida. Sensações
que foram brotando assim, por um fogão.
Por um instante a patroa pensou no que era o conforto.
Em como seria ter uma cozinha de verdade - nem precisava ser daquelas de
revista, que costuma folhear enquanto espera o mais novo dormir sob a luz
intermitente da lamparina. Noites de vigília. Vida demorada, consumida aos
bocados.
Havia 3 meses tinham se mudado para aquele barraco de
dois cômodos. Conheceram-se anos atrás, na rua, catando papel, vivendo embaixo
de viaduto. Tinham conseguido segurar a barra do álcool, da melancolia, da
loucura. O fogão de duas bocas por testemunha.
“Não tenho vergonha, vergonha é roubar sem poder
carregar”, ela costumava dizer. Naquele exato momento, o companheiro pareceu
notar nela essa expressão de descontentamento. Mesmo com o fogão branquinho
ali, que carregou por subidas e descidas. E ainda teve que defender dos
espertos do depósito. Sentiu uma mistura
de ciúme com impotência.
Perguntou a ela se era aquilo mesmo que queria, se já
não era a hora de cada um ir pro seu lado. “Vida besta”, resmungou, os olhos
marejados. Ela pôs a mão na boca dele, olhou bem nos olhos do companheiro e
disse que não era hora de brigar nem remoer coisa da vida. Juntos, prepararam o
almoço e depois comeram se permitindo brincar à mesa.
* Marcos Alves é
jornalista e diretor de vídeos. Textos para Impressos, eletrônicos e também
para acordar, dar voz à alma. Foi repórter do impresso “O Tempo”, em Belo Horizonte. Em
2003, uma pausa das redações, vieram os trabalhos independentes, a maioria em vídeo. Bom para abrir o
leque. De volta ao trecho, foi Editor de texto na TV Riosul em Resende/RJ. É formado
em Jornalismo pela Fafi-BH, atual UNI-BH, em Belo Horizonte.
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