Lalão como no céu vai sumindo
Por Urariano Mota
Meu filho ontem me perguntou:
- E Lalão, o senhor não vai
escrever nada?
Tão abatido eu estava, que
rosnei:
- Não.
Mas uma coisa é falar na mágoa,
outra bem diferente é cumprir o que a mágoa rosnou. Por isso tento escrever
estas linhas agora. E paro, reflito, volto e percebo que as linhas me vêm
cheias de lapsos, sem a mínima serenidade. Quero dizer: Lalão foi enterrado no
último domingo. Lalão faleceu no sábado 16 de fevereiro, de morte morrida, ou talvez
matada pela incúria do hospital que o atendera. Dias depois de internado por
ter sofrido um primeiro infarto, Lalão recebeu alta, porque estaria “bom”. Para ser morto em casa,
deveriam ter acrescentado.
Então vem a primeira lacuna. No
cemitério de Santo Amaro, no domingo, enquanto a Rede Globo entrevistava a
viúva, o filho, o pranto do filho, as lágrimas e o choro – ou seja, tudo aquilo
que é mais importante para a reportagem –, eu tentava conversar com o coveiro,
à margem do espetáculo como Lalão, mas que se chama Amaro.
- O senhor sabe quem foi esse
homem que morreu?
- Sei não senhor. Eu só recebo
este papel aqui.
E me mostrou um papel onde se
escrevia: Esdras Mariano Rodrigues da Silva, bloco G, 208. Nada de Lalão nem da
pessoa dele. Então eu olho para o seu Amaro, esse Lalão que não pôde ser, e
falo do Lalão que não mais será:
- Esse homem foi um dos maiores
violonistas do Brasil... eu falo, como
um marciano, como um ET esta coisa absurda, “violonista do Brasil”, para me
referir a um cadáver apenas, que entrará no bloco G, 208.
- Foi? E seu Amaro se vira para
uma senhora, que passa vestida de macacão azul como ele, para perguntar: O café
já saiu?
E vai tomar um café, porque o
sepultamento marcado para as 10 horas já se prolonga, são 10 e meia e nada, pois
os evangélicos começaram a encomendar o morto entre hinos e prantos. É
desesperador. Há um oportunismo da fé religiosa, que prega para os desvalidos.
E não podemos fazer nada, nada, quando seria preciso expulsá-los, discursar um
discurso maior, eloquente, furioso e furibundo neste instante. Nada. A vontade
que dá na gente é de beber até cair como um estúpido. E rosnar, e rosnar: - Não!
Não!
Não é forçar a nota, amigos. Mas
em momentos como este, da morte de um artista popular, mais cresce na gente uma
revolta. Lalão, o genial violonista, um homem bruto e fino, pobre, que não teve
o gênio proclamado pela indústria
cultural, pois é, vai para o bloco G, 208. Hinos, palmas e conformação. “O céu
está em festa”, berra um conformista. Nada.
E vem outro lapso. Lembro do que
anotei quando vi Lalão pela primeira vez, na casa de Racine, o amigo dos
violonistas no Recife. Era também um domingo, mas de carnaval, há cinco anos. E
vi. “É um concerto”, comentou uma pianista, que encolhida se alumbrava perto de
mim. De fato, era um concerto de um violonista só, violão, bateria e outros
instrumentos nas únicas mãos do gênio negro E anotei: sinto-me devedor de um
texto sobre esta hora, nesta hora da tarde. O diabo é que as solicitações de
assuntos os mais diversos nos vêm de toda a parte. E ficamos entre o dever e o
prazer.
Dois anos depois, escrevi sobre
aquela tarde: em outro ponto da casa de Racine, em outro lugar depois estava
Lalão, a andar impaciente pela grande sala, com um cigarro no bico, com seu
físico nada suave de atleta estivador do cais. Eu lhe perguntei, pois eu estava
muito inconveniente: “Vai tocar, Lalão?”. E ele: “Se me chamarem, eu vou”. E
seus dedos de tarado por cordas agitavam-se. Então fui ao dono da casa e, com a
maior das inconveniências, interrompendo-o no solo de violão que ele fazia como
poucos, eu lhe murmurei que Lalão queria tocar. “Ah, certo”, ele respondeu. E,
com superior educação, acabou o seu número e cedeu o próprio lugar para o
estivador mais sublime do Recife. Para quê? Vocês conhecem a lenda do Uirapuru?
Se conhecem, podem imaginar: Lalão, quando toca, toda a constelação de
violonistas silencia a ouvi-lo. Na verdade, ouvi-los: porque ele dá um concerto
de violonistas, sola e se acompanha ao mesmo tempo com uma velocidade e
profusão de acordes tamanhos, que só sabemos existir um só violão porque
estamos vendo-o. Ou vendo-os.
No ano passado, na última vez em
que vi Lalão, porque vê-lo no cemitério não é mais vê-lo, escrevi: é sábado, no
Recife, em 13 de outubro de 2012. Estamos no Bar Mamulengo, em um encontro que
reúne os melhores violonistas e chorões da cidade. Estamos aqui para uma
confraternização com Luís Nassif, jornalista e escritor, que ama e divulga os
músicos pernambucanos lá em São Paulo. E
quando digo estamos, e me incluo indevido numa confraria de monstros das
cordas, quero dizer: estão Beto do Bandolim, Henrique Annes, Lalão, Racine,
Ravel, o próprio Nassif, e mais músicos na plateia, nas mesas em torno, que
inibidos não vêm ao pequeno círculo onde se destacam os bambas e microfones.
Então vem dos jovens com a síndrome de down o melhor momento deste
sábado 13 no Recife. Uma bela mocinha com os seus olhinhos onde brilha uma
irreprimível simpatia, com seus olhinhos puxados que são uma nascente de amor,
beija no rosto o violonista Lalão. Ele, mulato escuro, enrubesce na penumbra do
momento. Ficou confuso, a sorrir para a mocinha. Ao que ela lhe pede, pois
grande é o cerco e cercania das atrações do sentimento: “Toca Olha pro céu meu
amor”. Ela pede e sai. Ele resmunga para mim: “olha pro céu meu amor...”. E eu
sei o que isso significa. Lalão quer apenas dizer, tocar uma coisa tão boba,
para um músico da minha altura e talento, era só o que faltava.
Não sei se Lalão viu. Ou se viu, como bom artista, viu e guardou
escondido no seu coração. Para ninguém ele disse naquele minuto, pois parecia
tocar alheio àquele mar de felicidade, que se espraiava na singela composição,
no modo e humildade com que ele a tocava. Ele fez que não viu que estávamos
todos felizes ao ver a felicidade dos jovens de Down a dançar. A gente se
amarrando pra não cantar em voz bem alta os versos
Vê como ele está lindo
Olha praquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Olha praquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Foi numa
noite, igual a esta
Que tu me deste o teu coração
O céu estava, assim em festa
Pois era noite de São JoãoHavia balões no ar
Que tu me deste o teu coração
O céu estava, assim em festa
Pois era noite de São JoãoHavia balões no ar
Xote, baião no salão
E no terreiro
O teu olhar, que incendiou
Meu coração”.
E no terreiro
O teu olhar, que incendiou
Meu coração”.
O momento em
imagens com a duração de um beijo ficou aqui
http://www.youtube.com/watch?v=0Q8xz5LDrdk&feature=youtu.be
Certa vez, o trágico poeta Racine
escreveu esta lição: “sem dinheiro, a honra é uma doença”. É verdade. Igual a tantos artistas que têm no
talento a única honra, Lalão se foi. Como
um balão que se incendiou.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro
da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Li a outra crônica, da outra semana do ano passado, aqui em destaque branco. Ambas emocionaram-me. Então, Lalão foi o responsável pela trilha sonora da outra festa. Lembrei-me de Dilermano Reis, que também fazia um violão se multiplicar, pelo imenso talento, e da letra de música infantil "Bambalão/ senhor capitão/ Espada na cinta/ ginete na mão//. Justíssima homenagem!
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