O filósofo
Por Humberto de Campos
Educado no Colégio Caraça, o coronel Venâncio
Figueira, fazendeiro em Uberaba, havia se contaminado, pouco a pouco, de
filosofia e de latim, de modo a preocupar-se, mais do que o necessário, com os
graves problemas da vida. Manuseador quotidiano de certos autores profanos, ele
se punha, às vezes, a pensar, no alpendre da sua casa de fazenda:
- Sim, senhor! Esses filósofos têm razão! Este
mundo é tão desigual, tão cheio de injustiças, de irregularidades clamorosas,
que qualquer mortal, encarregado de fazê-lo, o teria feito melhor!
E acentuava, melancólico:
- Este mundo está muito mal feito!...
À noite, porém, reunida a família na sala de
jantar, o velho fazendeiro arreganhava os óculos no nariz, tomava a
"Bíblia", chegava para mais perto o lampião de querosene, e punha-se
a ler, pausado, o "Livro de Jó". E começava, de novo, a meditar,
diante destas palavras do capitulo 38: "4. Onde estavas tu, quando eu fundava a
terra? Faze-mo saber, se tens inteligência. "25 - Quem abriu para a inundação um leito,
e um caminho para os relâmpagos e trovões? "41 - Quem prepara aos corvos o seu
alimento, quando os seus filhotes implumes gritam a Deus, e andam vagueando por
não terem de comer?"
Certo dia, dominado pelas idéias reacionárias
bebidas em autores modernos, passeava o coronel pelo pátio da fazenda, quando,
ao ver as andorinhas que voejavam por cima do gado, voltou novamente a
raciocinar:
- É isso mesmo, não há duvida! O mundo é muito
mal arranjado. Aqui está, por exemplo; este boi. Porque, tendo ele chifres,
patas, orelhas, e sendo tão forte, há de viver sempre na terra, a arrastar-se
pelo solo, quando aquela andorinha, que não tem nada disso, se locomove,
rápida, ligeira, dominando os ares?
Nesse momento, porém, uma andorinha que lhe
passava por cima, deixou escapar alguma cousa que lhe fazia sobrecarga, e que
foi cair, certeira, na cabeça descoberta do coronel. Este levou a mão
instintivamente à calva, e, olhando os dedos brancos daquela indignidade, caiu
de joelhos, clamando, arrependido:
- Perdoai-me, Senhor, perdoai-me! O mundo está
muito bem organizado! O que nele há, o que nele vive, o que nele existe, foi
feito com perfeição, com acerto, com sabedoria!
E levantando-se, limpando a mão:
- Imagine-se que fosse um boi....
*
Jornalista, político e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
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