Passarela de sonho
* Por Pedro J. Bondaczuk
A Mangueira entrou quente na
Marquês de Sapucaí, disposta a fazer história. Mais do que isso, estava
fervendo, determinada a conquistar um título que não ganhava há onze anos. O
último fora o de 1987. Desde a definição do enredo, da escolha do samba e dos
primeiros ensaios, essa determinação estava evidente na cabeça de cada membro
da escola. E todos trabalharam muito, duro, cada um na sua função, nos meses
que antecederam o Carnaval, para que nada desse errado na hora agá, no momento
do desfile, como havia ocorrido em tantos anos anteriores. Certamente, não
daria.
Desde a comissão de frente,
passando pelas diversas alas, como a das baianas, por exemplo, pelos
mestres-salas e porta-bandeiras, pela bateria, passistas, ritmistas etc. tudo
estava perfeito. As fantasias eram de tirar o fôlego. A combinação do verde e
do rosa, que aparentemente parecem não combinar, era deslumbrante, para artista
ou crítico nenhum botar defeito. Era de estontear.
Ainda na concentração, minutos
antes do início do desfile, o presidente da escola, Elmo José dos Santos, havia
sido muito feliz nas suas palavras aos componentes da Mangueira. Mostrara
irrestrita confiança na vitória e ressaltara que este era um ano muito
especial, o do 70º aniversário de fundação da verde e rosa. Suas palavras
parece que eletrizaram os componentes. Havia eletricidade no ar. Uma corrente
de milhares de volts agitava todos os mangueirenses.
Rufina desfilaria pelo 48º ano
consecutivo. Sua mãe, Juleusa, fora uma das fundadoras da escola e desfilara
até o ano passado. Neste, por motivo de doença, estaria ausente pela primeira
vez. Havia sido levada às pressas para o Hospital Souza Aguiar, três dias antes
do desfile...
Rufina havia estreado em 1940,
aos doze anos de idade, e logo com vitória. Naquele ano, a verde e rosa fez um
desfile memorável, defendendo o inesquecível enredo de Carlos Cachaça,
“Prantos, pretos e poetas”. Na ocasião, a escola era presidida por Arlindo
Rodrigues, que fora o seu padrinho e bancara, do seu bolso, sua fantasia.
Desde então, Rufina nunca deixou
de desfilar. Em duas ocasiões, desfilara grávida e, no seu entender, essas
haviam sido, até então, suas duas melhores performances. Mas estava determinada
a superá-las, neste Carnaval de 1998, por uma razão bastante especial, que não
havia revelado para ninguém qual era. Suas quatro filhas e dez netos também
faziam parte da escola e estavam desfilando. Seu companheiro, Juvenal, que um
dia integrou a bateria, mas que já era falecido, certamente olhava do céu o
esplendor da verde e rosa, torcendo, claro, por sua vitória.
Ao entrar na avenida, Rufina
persignou-se. Sentia-se leve, ágil como menina, transfigurada. Era como se
pisasse numa passarela de nuvens, irreal, de sonhos. Sempre se sentia assim
durante os desfiles. Esquecia-se da vida dura para sustentar suas quatro filhas,
sozinha há mais de vinte anos, quando enviuvara, com o miserável salário de
doméstica. Não se lembrava das preocupações do dia a dia, das dívidas, das
humilhações pelas quais passava, das incontáveis dificuldades. Sentia-se uma
deusa, uma musa, uma rainha. E hoje, mais do que nunca...
Aos poucos a escola ganhava toda
a avenida, colorindo a passarela do samba de verde e rosa, cantando e sambando
com alegria e desenvoltura, ao ritmo da voz rouca de Jamelão, seu tradicional
puxador. Ao contrário de anos anteriores, todos cantavam o samba-enredo, “Chico
Buarque da Mangueira”, composto por Nelson Dalla Rosa, Vilas Boas, Nelson
Csipai e Carlinhos das Camisas.
A bateria era um espetáculo a
parte. Como sempre, distinguia-se das demais pelo uso diferenciado do surdo de
marcação. Essa era a sua característica peculiar e inimitável, defendida por
uns e criticada por tantos. Mas dava gosto ouvi-la. A bateria havia manobrado
com perfeição e entrado, milimetricamente, no recuo, sem que as alas que vinham
atrás se afunilassem e comprometessem a harmonia do desfile. Era um ótimo
sinal.
E Rufina estava demais! Há dez
anos que desfilava na ala das baianas. Fora, até então, passista e tinha o
samba no pé, herança dos seus ancestrais africanos. Sua fantasia deste ano
quebrava a tradição, pois não era toda branca, como a da maioria das escolas,
mas verde e rosa, o que dava um colorido especial ao conjunto e um visual
magnífico visto das arquibancadas.
Ao passar em frente do camarote
dos jurados, Rufina se transfigurou. Fez várias evoluções, com absoluta
perfeição, cantando, afinada, o samba-enredo e se distinguiu em todos os
aspectos das suas companheiras de ala. Flashes e mais flashes de fotógrafos
cegaram-na, mas ela nem se abalou. Sentiu sobre si o olho da câmera da TV que transmitia
o desfile e isso a estimulou a dançar mais e mais e ainda melhor.
O homenageado do ano, Chico
Buarque, parecia um lorde. Sorria sem parar e acenava para a multidão, do alto
de um carro-alegórico. E o povão retribuía com gritos de “já ganhou”, destinados,
logicamente, à escola.
E a Mangueira, nesse ano,
apresentava uma inovação a mais, entre tantas outras surpresas que havia
reservado para o público. Era o compositor Carlos Vinhas, tocando um piano,
colocado num carro-alegórico, fazendo uma espécie de recital em plena Marquês
de Sapucaí, executando algumas das canções mais conhecidas e consagradas de
Chico.
Rufina via aproximar-se, mais e
mais, o grande arco da Praça da Apoteose, o que representava o fim do desfile e
a tão sonhada vitória. Sim, pois se a escola continuasse como estava, não havia
como perder. E o público reconhecia isso. Aplaudia, freneticamente, agitando
bandeirinhas verdes e rosas, aos gritos de “já ganhou! Já ganhou!”. Mais do que
isso, acompanhava Jamelão no refrão do samba-enredo:
“Ôiaiá...vem pra avenida
Ver meu guri desfilar.
Ôiaiá...vem pra avenida
Ver meu guri desfilar
Oiaiá... é a Mangueira
Fazendo o povo sambar”.
Toda a Marquês de Sapucaí era um
coro só. Até torcedores de outras escolas foram contagiados pelo refrão da
verde e rosa. Os milhares de turistas estrangeiros, mesmo sem entender bulhufas
do que diziam, repetiam, com a multidão, o refrão do samba-enredo. Era até
pitoresco de se ver.
Finalmente, a última ala passou.
A Mangueira havia desfilado no tempo certo e não perderia pontos, portanto,
nesse quesito. E, certamente, em nenhum outro. Fizera um desfile impecável,
memorável, perfeito.
Na dispersão, pura euforia!
Sambistas confraternizavam-se com personalidades do mundo artístico e esportivo
que desfilavam na Mangueira. Repórteres se acotovelavam em busca das melhores
entrevistas. Havia, entre os mangueirenses, absoluta certeza de vitória. Chico
era o mais feliz de todos. Parecia um menino grande que houvesse ganhado um
brinquedo que há anos cobiçasse.
Foi quando Rufina desmanchou-se em prantos. Era um choro
misto de alegria e tristeza, de desabafo de tensão e de manifestação de dor. Na
véspera do desfile, visitara a mãe no hospital. E esta, em tom premonitório,
lhe pedira que, houvesse o que houvesse, não deixasse de desfilar. E,
sobretudo, que trouxesse esse título para a Mangueira, “por ela”.
Na hora, Rufina não entendeu a
razão do pedido. Só veio a entender o real significado das palavras da mãe
quinze minutos antes de entrar na passarela do samba. Um telefonema do Hospital
Souza Aguiar dera-lhe conta que Juleusa acabara de falecer...
Do livro “Passarela de sonho” (inédito)
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio
Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor
do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico
de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos
livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos),
além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Povo ruim. Sabendo do desfile poderia adiar a notícia fatídica. Mas a emoção só fica completa diante do drama.
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