segunda-feira, 20 de setembro de 2010




Não confunda grão de amor com grande amor

* Por Eduardo Murta

Mãos, para Camilo, eram bem mais que extensão do corpo. Eram uma espécie de mapa do universo. Lia, desde cedo, o tracejado das palmas de mulheres, homens, meninos e meninas em feiras, nas festanças típicas, escolas ou hospitais. Montava ali sua tenda e, ninguém nunca tendo vindo reclamar de volta, se julgava bem-sucedido no que se propusera a fazer. E realizado. Rejeitara ofício em comércio, em ranchos, banco ou cartório, porque buscava outras velocidades na vida. Destas em que, tocando tudo de forma mansa, não lhe fará mal algum ser atropelado por uma borboleta. Ou pelo acaso. Ao contrário, sinal de sorte.
Era isso o que buscava e nisso se pusera reconhecido e respeitado. Formara pequeno império. Fazendas com curso d`água, cabeças de gado aos milhares, caminhonetes importadas, viagens à Europa, ações na bolsa. Caminhava pela sombra. Até que, maldito dia, aquele homem fora bater-lhe à porta. Econômico na palavra, sem dizer de onde viera, nem a que mando. Pediu apenas urgência para o que iria contar: que simplesmente fugisse. Haviam decretado sua sentença de morte.
Deu o recado, se virou e partiu. Camilo não se permitiu impressionar. A perna torta do desconhecido era o que mais lhe prendera a atenção, fazendo poeira pelo caminho. Acenou aos jagunços, a que deixassem partir. Mas debandou de ideia, súbito, e ordenou que o barrassem ao portão. Logo percebeu a mudança de tom. Farejava medo de longe. A urina se desenhando à roupa do sujeito, recomendou que não lhe temesse. Queria só o nome de quem o contratara.
O enviado foi ouvindo a vozinha pausada, delicada de Camilo, que lhe conferira até a fama de Sinhazinha. As unhas bem cuidadas – contavam que adornava também as dos pés. Desviou o olhar, o medo se apoderando dele. E o anfitrião lhe tranqüilizou. Esquecesse o temor, porque jamais fora de destilar rancores. Fazia adoecer o coração. O suor iluminando a face mulata, o estranho concordou então em revelar o motivo, mas nenhum ponto mais.
Limitou-se: “Foi traição da palavra. Coisa pequena, mas traição”. Camilo sem entender, porque sempre se prendera rigorosamente ao que as traduções quiromânticas autorizassem. Ouviu e deixou que o sujeito seguisse. Como era, ele mesmo, um empregado do destino, se conformaria com o que o destino lhe trouxesse. Um mês mais e, no entra e sai de clientes, já havia se esquecido por inteiro daquele estado de coisas.
Foi assim, ao sabor do vento esfriando o abril, que acolheu a freguesia do sábado. Contou sete mulheres e dois homens à fila. Recebia à sombra da jaqueira. Passou a primeira - futuro bambo, capacidade mínima de transformar o amanhã. Vieram a segunda, o quinto, o oitavo. Ninguém que surpreendesse. Vidinhas para lá de sonolentas.
A última, presumiu, só reforçaria a sensação do dia insosso. Cheirava a tristeza malsã. Veio se aproximando em lentidão já da idade. Cumpria ali pelos 80 anos. Qual nada! Os olhos começando a lhe soar familiares. Valha-me, Deus!!! Cravou-lhe em Camilo um punhal de prata ao dorso da mão, fixando-a à mesa de madeira. E, ligeira, logo tinha uma segunda arma, igualmente brilhante, lustrada, à garganta do vidente.
Ele aturdido, ela dizendo que era acerto por amor traído. Que, por palavra dele, abandonara tudo - família, lugar, lembranças - por um certo Onofre, radicado ali pelas baixadas de Lagoa Seca. E que acabara desdenhada e só. Não imploraria, sim, confirmava que se lembrava dela, mas que havia um mal entendido na história. Que a frase verdadeira era: “Para ele, você um grão de amor”. Ela, agora com os braços trêmulos, mas vigorosos, foi atravessando-lhe a lâmina à pele abaixo do queixo. Contou ao delegado, mais tarde, que era pura precaução. A que nunca, jamais, fizesse outra gente padecer de amor em vão.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

2 comentários:

  1. É tão fácil culpar o outro pelos seus próprios
    fracassos...
    Abraços Murta.

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  2. Que conto incrível, Murta! gostei muito. É um perigo lidar com a esperança das pessoas. qualquer decepção pode ser mortal. Adorei!
    Abraços

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