quarta-feira, 22 de setembro de 2010




Multiplicai

* Por Mara Narciso

Os frágeis silvícolas do sertão mineiro foram atacados no século XVII pela expedição do Mestre de Campo Matias Cardoso, bandeirante paulista, que usava de forma indiscriminada a violência contra os nativos, através de guerrilhas de repressão e extermínio, e causou diversos genocídios. Após muitas idas e vindas, longos períodos de total dispersão, o povo Xacriabá, resultante da miscigenação de índios e negros na região de Itacarambi, no norte de Minas, hoje conta com cerca de três mil pessoas, morando em local situado à margem esquerda do Rio São Francisco, e é protegido pela FUNASA – Fundação Nacional de Saúde.
Um morador dessa reserva indígena tem 73 anos, embora não tenha comemorado nenhum deles. Como se espera, tem natureza tribal e reza pela cartilha da autoridade patriarcal. Vendo-o assim, hígido, sorridente, com a face escura e sem rugas, corpo magro e empertigado, cabelos brancos, levemente encaracolados, é possível, pela sua maneira, imaginar que o adereço ostentado no pescoço tenha algum significado hierárquico.
O colar de ossos, assim como a pulseira e outros utensílios caseiros, segundo informa, são artesanatos finos e bastante valorizados fora da comunidade, principalmente em Brasília. Após serem cortados, os ossos são lixados com a mesma máquina com a qual se corta cerâmica. Para completar a estética da peça, de textura lisa, e toda branca, consegue-se o contraste pelo acréscimo de miçangas pretas. O adorno lembra dentes de animais selvagens, e sua visibilidade salta aos olhos.
A mão direita traz o quarto dedo retraído por alguma queimadura, ou talvez por uma picada de cobra. Está trajado de branco, à maneira da cidade, e ciente da sua importância, senta-se ereto, e fala de forma clara e digna. Tem um problema de saúde relativo à tireóide que não o incomoda com o uso diário do medicamento. Mantém os cuidados com o corpo e a aparência jovial de braços fortes e gestos ágeis, pelo esforço físico do dia a dia, seguindo uma rotina de lavrador.
Conta que se levanta cedo, pega a enxada, e antes mesmo dos jovens pegarem no batente, já está a postos, roçando, arando, preparando a terra e outros afazeres relativos ao plantio de feijão, milho e mandioca. A mão é calosa, típica de trabalhador braçal que arranca da terra seu sustento. Os filhos cuidam das próprias vidas, e poucos participam desses recentes roçados. Alguns trabalham na colheita de laranjas em São Paulo.
O patriarca já se aposentou, mas nem pensa em parar, pois ainda é arrimo de família. Surpreende ao dizer que tem dois filhos pequenos, de quatro e seis anos. Mas tem outros seis filhos. Esses todos com a segunda mulher, hoje com 43 anos. Da primeira, foram 18 filhos, e seriam mais, porém a outra morreu de parto, antes dos 40 anos.
Então veio a segunda, e essa enormidade de filhos, perfazendo 26 almas, ao todo. Arrisca-se a supor que a família ainda poderá crescer. Conta ser muito animado para tudo, tendo coragem e boa disposição para o trabalho e outros afazeres, mas reconhece não ser bom para nomes. Dos filhos, sabe chamar por todos, errando pouco, mas dos 72 netos, não se anima a adivinhar o nome nem da metade. Não são meninos parecidos a ponto de o confundir. O problema é a influência da televisão, com seu gosto por excrescências nominais, modos excêntricos, quase bizarros de dar nome a gente. Então não lembra.
Encerrando a conversa, sem intenção de censura:
- O que o senhor acha que aconteceria com uma cidade como Montes Claros, caso todas as pessoas fizessem como senhor e tivessem 26 filhos?
- Aconselho não. Isso não é pra todo mundo não. Além de que dá muito trabalho, a cidade não cabe esse tanto de gente!

* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

3 comentários:

  1. Não sei se belo, melancólico ou triste. Mas, com certeza, um retrato fiel de um povo que era dono desse chão até que nós, intrusos, chegássemos. Valeu o ótimo texto, Mara.

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  2. É surreal imaginar que no país ainda exista
    essa fronteira; os índios tão bem descritos
    em inúmeras páginas dos livros de História
    estejam alijados da sociedade.
    Abraços Mara

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  3. Parece improvável, mas o indivíduo indígena é tido como metade cidadão. Não é considerado autônomo. Fora das comunidades deverá estar em companhia de funcionários. A foto escolhida por Pedro indica a supernutrição. O mal atingiu a todos os seguimentos sociais.

    Obrigada gente, pela leitura e comentário.

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