quinta-feira, 26 de agosto de 2010




A terra que “o hômi” abandonou

* Por Fernando Yanmar Narciso



Em tempos não tão longínquos, o Nordeste ainda aguardava ser descoberto. No sertão, a maioria esmagadora das pessoas vivia como na era paleolítica, dependendo quase apenas da superstição e da sorte para continuarem vivas.
Foi nesse contexto histórico em que nasceu o cineasta/roteirista/ator baiano Glauber Rocha. Artista engajado, fascinado desde sempre por temas religiosos e misticismo (e por uma ervinha também...) ele foi um dos fundadores do movimento Cinema Novo, no Rio de Janeiro, ainda adolescente. De todos os filmes que realizou em vida, o mais cultuado é, sem dúvida, nosso “faroeste brasileiro” Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964.
Ambientado no fim da década de 1930 no sertão nordestino, o filme reinventa o significado da dor e do sofrimento. Somos em seu início apresentados ao miserável vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey). Na verdade é quase um eufemismo chamá-lo de miserável. Com uma pobreza tão grande quanto sua fé, ele vive num esboço de roçado com sua esposa Rosa (Yoná Magalhães) e a mãe dela. Como será que eles juntaram dinheiro pro casamento, aliás? São tão pobres e sofredores que têm de comer com os dedos a pouca farinha de mandioca que conseguem produzir. Ele resolve ir à feira da cidade vender algumas vacas e tentar melhorar de vida- como se isso fosse possível onde eles vivem...
Ao se sentir roubado por seu patrão, um pecuarista local, ele puxa o facão e o mata, sendo perseguido pelos jagunços do patrão. Num tiroteio, a mãe de Rosa é morta e eles resolvem fugir de casa. Nas andanças sob o sol escaldante, Manuel e Rosa conhecem o místico negro Sebastião (Lídio Silva), profeta do Apocalipse, no topo de uma montanha conhecida como Monte Santo, pregando para fiéis pobres e miseráveis sua previsão que “o sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão”.Por ter sido o último a chegar ao Monte Santo e ser muito jovem, Manuel é tido pelos fiéis como um enviado de Deus, e logo se torna o segundo no comando da procissão. Sua fé e coragem são tão grandes que o obrigam a cometer verdadeiras loucuras, como subir o Monte Santo de joelhos, carregando uma pedra imensa na cabeça.
Como no mundo tudo vai para algum lugar, o crescente culto a Sebastião significa menos fiéis nas igrejas, que ficam jogadas às moscas. Para reverter a situação, o padre da cidade recorre aos serviços do misterioso Antônio das Mortes (Maurício do Valle), caçador implacável de cangaceiros, para matar Sebastião.
Rosa, visivelmente a única pessoa sensata de todo o sertão, passa o filme quase todo no papel de bode expiatório. Quando ela fica farta de seguir aquele bando de fiéis, logo é taxada por Sebastião de “possuída pelo demônio” e deve ser purificada através do sacrifício de um bebê. Ter uma faca ensopada do sangue da criança passada em sua testa é a gota d’água para ela, que mata o místico a facadas. Das Mortes chega à cidade e mata todos os seguidores de Sebastião, mas ao ver o “santo” morto, resolve deixar Manuel e Rosa escaparem e assumir a autoria do assassinato. O fato de não fazer sentido Das Mortes matar todo mundo em vez de arrastar os fieis de volta para as igrejas não vem ao caso.
Enquanto fogem, os dois se encontram com o cangaceiro Corisco, o “Diabo Louro” (Othon Bastos). Último sobrevivente do bando de Lampião, ele tenta reerguer o legado de seu capitão. Manuel se apresenta para Corisco como interessado em entrar para o bando, ganhando logo o codinome Satanás. Ou seja, ele passa de santo a demônio num pulo. Apesar de corajoso, ele tardiamente percebe que viver do sangue alheio não é vida para ele. Logo Das Mortes consegue alcançar Corisco e o desafia para um duelo final.
O filme conta com um elenco de atores que em breve seriam astros no Brasil- alguns nem tanto. Yoná Magalhães logo faria sucesso como atriz de novelas da Globo. Maurício do Valle seria em breve imortalizado como coadjuvante nervosinho no programa e nos filmes dos Trapalhões. Quebrando regras, e ao mesmo tempo recheando o filme de referências cinematográficas, Glauber Rocha criou uma obra de arte dificílima de ser digerida. Sua referência mais óbvia é ao clássico O Encouraçado Potemkin, de Serguei Eisenstein. As cenas de Manuel se arrastando na rua com a pedra na cabeça e a tocaia de Das Mortes aos seguidores de Sebastião são mímicas quase perfeitas da selvagem cena das escadarias do filme russo.
Em vários pontos da fita, os personagens sentem uma agonia tão grande e sofrem tanto que sentimos vontade de entrar no calor do deserto e esganá-los, para ver se voltam a usar a razão. Desde o início, nos fica claro que Manuel representa o coração da audiência, e Rosa, seu cérebro. Tendemos a sentir mais compaixão pelo herói sofredor, disposto a comer o pão que o diabo sentou em cima em nome da esperança de uma vida melhor, do que por um personagem realista, que esfrega em nossos rostos que ficar só rezando não leva a nada.
Por vezes, achamos que nos deixaremos levar pelos sermões de Sebastião, que age e fala como os pastores evangélicos modernos, mas sem pedir dinheiro. Sua lábia e seus sermões apocalípticos são tão contundentes que assustam. Prevendo como seriam os protagonistas de faroestes góticos italianos, Antônio das Mortes é uma figura imponente, que causa calafrios. Não sabemos nada sobre ele, além de que anda armado e odeia cangaceiros. Matemática básica. Corisco, apesar de cruel, é um personagem trágico, por vezes digno de pena. Um louco que acredita do fundo da alma ter incorporado a alma de Lampião, cujo código de honra já não serve mais para o mundo em que vive, mas que continua agarrado à memória do capitão até o último suspiro.
Por fim, Rocha nos presenteou com um filme angustiante e dramático ao extremo que chega a dar vontade de beber água a cada cinco minutos, por causa de sua aridez transbordante. Não recomendo àqueles acostumados com a pompa das produções fantasiosas da Globo, onde até os favelados conseguem passar a lua-de-mel em Paris, tampouco às pessoas de fé.

* Fernando Yanmar Narciso, 26 anos, formado em Design, filho de Mara Narciso, escritor do blog “O Blog do Yanmar”, http://fernandoyanmar.wordpress.com

2 comentários:

  1. E a facilidade com que se vai para a Itália então...é vapt vupt!
    Glauber cutucava o imaginário daqueles que já estavam acostumados com o pré estabelecido.
    Tenho a sensação que muita gente captou as mensagens dele ou não...
    Boa lembrança.
    Abraços

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  2. Adorei a sua análise de "Deus e o Diabo na Terra do Sol". A sua explicação sobre o título do filme é irrefutável.

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