domingo, 29 de agosto de 2010




Nada de vontade, vontade de nada

* Por Anna Lee


Dia 22 de abril de 2006. Comemoração dos 506 anos da descoberta do Brasil (a oficial, pois há controvérsias, mas isso é uma outra história). Na primeira página dos jornais e também nos sites de notícias na Internet, uma foto do presidente Lula, na qual exibe as mãos lambuzadas de petróleo – o “ouro negro”.

No dia anterior, ele participara da cerimônia de início da produção da P50, maior plataforma de petróleo brasileira, localizada na bacia de Campos, no Rio. Era feriado de Tiradentes – o Joaquim José da Silva Xavier –, considerado um dos grandes mártires da independência do Brasil porque morreu na forca, em 21 de abril de 1792, durante a Inconfidência Mineira.

Como convinha, Lula lembrou Tiradentes e fez um paralelo entre seu governo e a independência do país (com o funcionamento da P50, a Petrobrás, após 53 anos de história, torna o Brasil auto-suficiente na produção de petróleo). Ele também repetiu um ato do presidente Getúlio Vargas, em 1952: molhou as mãos no óleo e imprimiu as marcas em um macacão de funcionário da Petrobrás.

Por caminhos oblíquos, lembrei-me de Glauber Rocha. Coisa de uma semana atrás saiu a notícia do lançamento da versão de Terra em Transe em DVD duplo.

Em 1967, quando Glauber lançou esse filme, já havia três anos que o golpe militar acontecera no Brasil, em 1º de abril de 1964. João Goulart, o Jango, afilhado político de Getúlio Vargas, presidente deposto por conta do golpe, estava no exílio, entre o Uruguai e a Argentina, onde era proprietário de estâncias. No Brasil, estava impedido de entrar.

Neste 1967, articulava-se a aliança Frente Ampla entre a direita, o centro e a esquerda brasileiros, representados, respectivamente, nas figuras do ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda e dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, para tentar restabelecer a democracia no Brasil. Essa era uma aliança até pouco tempo improvável já que Lacerda tivera papel importante e ativo no processo que desembocou na queda de Jango. No entanto, sob a bandeira da luta pela democracia, um e outro se permitiram concessões, até porque era evidente que cada vez mais o governo dos militares endurecia. Tanto é que em 13 de dezembro de 1968 veio o AI 5 e o presidente Costa e Silva ganhou poderes para fechar o Parlamento, cassar políticos e institucionalizar a repressão, acirrando definitivamente a ditadura no país. Isso num contexto de situações semelhantes que se repetiam no Cone Sul, onde regimes militares também se instalaram entre os anos 60 e 80 no Uruguai, Argentina e Chile, com o apoio dos Estados Unidos que, por sua vez, estava inserido no contexto da Guerra Fria e da chamada ameaça do comunismo.

Dentro desse universo político, Glauber Rocha produziu grande parte de sua obra e mais especificamente Terra em Transe, onde, a sua maneira, reproduziu acontecimentos do golpe de 64.

Jango tornou-se uma espécie de obsessão para Glauber. Ele tinha a intenção de lançar o projeto Jango, no qual pretendia produzir um filme, uma peça de teatro e um romance – textos esses em que mexeu até a sua morte em 22 de agosto de 1981, e os quais encontram-se, hoje, no arquivo do Tempo Glauber, no Rio. Sendo que, dos três, somente a peça Jango, uma Tragédya chegou a ser encenada pelo diretor Luis Carlos Maciel, em 1996.

A justificativa “não quero derramamento de sangue” que o presidente deposto apresentou para não enfrentar os militares e fugir para o exílio aparece duas vezes em Terra em Transe na boca do personagem Vieira, que também afirma: “Já disse, o sangue das massas é sagrado”.

Em 1972, Glauber estava em Cuba e resolve, enfim, pôr em prática o projeto Jango, depois de ter estado com o ex-presidente em Punta Del Este – numa época sobre a qual, em carta ao cineasta Zelito Viana, diz: “curti os melhores momentos de minha vida exilada, reencontrando a minha família e Jango em Punta Del Este (...)”

No roteiro do filme Jango, Glauber escreve um diálogo do presidente Getúlio Vargas, na véspera de seu suicídio, em 24 de agosto de 1954, com Jango, então ministro do Trabalho de seu governo. Tal encontro realmente existiu e é relatado em livros de História, mas não aconteceu nas bases contadas por Glauber. Ele parte para uma linha explicitamente ficcional quando trata do debate entre os dois sobre os prós e contras do suicídio. É sabido historicamente (com todas as problemáticas que, hoje a definição de “histórico” e “não-histórico” pode gerar) que, apesar da crise instalada no governo, por conta do assassinato do major Rubem Vaz, da FAB, no lugar do oposicionista Carlos Lacerda, a morte de Getúlio foi um fato inesperado, até mesmo para Jango, que tinha estado no Palácio do Catete horas antes.

Glauber usou de irreverência poética para interferir no processo dialético da história.

E o que isso tem a ver plataforma P50? Bem, daria tudo por um diálogo imaginado por Glauber em que Lula, com as mãos lambuzadas de petróleo, tentando se fazer imagem populista e semelhança de Getúlio Vargas, explicasse ao próprio o processo engenhoso que faz agora o “ouro negro” ser bandeira de marketing da campanha de reeleição.

Nessa impossibilidade, mergulho na experiência do nada de vontade, que não me permite sequer acreditar que a escavação da democracia apodrecida do PT levará a um fundo, onde seja possível encontrar pelo menos uma vontade de nada.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.

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