sábado, 21 de agosto de 2010




Bill

* Por Sílvio Lancellotti

Não recebeu um nome de cachorro. Pela tradição dos criadores, todos os animais daquela ninhada deveriam ser batizados com palavras começadas pela letra S – e, à falta de uma opção mais imaginativa, o proprietário do seu canil decidiu chamá-lo de Salvatore. Quem comprou o bicho achou muita graça ao ler tal registro no documento do pedigree. Mas, assim que chegou à sua casa, tomou uma decisão radical. Para todos os efeitos, Salvatore viraria Bill.

E Bill o Salvatore cresceu e se desenvolveu. Como os seus ancestrais, um grande campeão na estirpe dos pastores alemães. Forte, rijo, bem maior do que os outros doze que Raúl, um argentino espertíssimo, cuidava de adestrar. A cada nova aula, Raúl assegurava: “Nunca vi animal tão inteligente...”

De fato, depressa Bill aprendeu a fazer de tudo. Mais do que pegar um jornal com a boca, sem estraçalhá-lo, mais do que buscar bolas ou galhos que o seu dono atirava longe, no parque ou na praia, Bill dormia ao pé da sua cama – atento aos mínimos murmúrios da vizinhança. No escritório, meigamente se alojava debaixo da mesa de trabalho. Bastava o seu dono desligar o seu micro, percebia a musiquinha de encerramento do Windows e se dirigia ao frigobar. Sabia que o dono tomaria o seu uísque derradeiro e se sentava, a língua de fora, à espera do último mimo da noite: uma pedra de gelo, para roer.

Assim viveram, companheiros, amicíssimos, por oito anos. Certo verão, saboreavam, juntos, as férias que o dono invariavelmente passava no seu belo veleiro de 32 pés, aportado numa marina de Ilhabela. Bill adorava navegar no Canal de São Sebastião, atrelado a um arreio especial que o impedia de cair ao mar, embora soubesse nadar. Ficava na proa, a desfrutar a boa brisa e os mil respingos salgados que a singradura produzia. Latia de satisfação e prazer. Nas ocasiões em que o dono pescava, mantinha a cabeça em seu colo e, ao intuir uma fisgada, se afastava, delicado, a fim de facilitar a cata do peixe.

Determinada manhã, ao despertar, o dono não viu Bill, como de hábito, à porta da sua cabina. Levantou-se, preocupado, e começou a vasculhar o barco, do porão ao tombadilho. Encontrou-o, morto, atrás do escaler da popa. Imediatamente compreendeu. Bill pressentira o desenlace, preferira partir sem uma despedida, solitário, longe dos olhos do parceiro. O dono chorou, uma tristeza lancinante a comprimir o seu peito, a apertar a sua garganta. Então, se decidiu. Não. Não levaria o corpo do cachorro a um veterinário para que fosse cremado. Acomodou-o num saco de dormir cheio de pesos, lacrou-o e rumou na direção do mar alto. Lá, sepultou-o nas águas, como nos velhos filmes.

No tarde seguinte, de volta ao cais, colocou o seu barco à venda.

* Diplomou-se em Arquitetura. Trabalhou na revista “Veja” de 1967 até 1976, onde se tornou editor de “Artes & Espetáculos”. Passou por “Vogue”, agências de publicidade, foi redator-chefe de “Istoé”, colunista da “Folha” e do “Estadão”, fez programas de gastronomia em várias emissoras de TV, virou comentarista de esportes da Band, Manchete e Record, até se fixar, em 2003, na ESPN. Trabalha, além da ESPN, na Reuters, na “Flash”, no portal Ig e na “Viva São Paulo” e é sócio da filha e do genro na Lancellotti Pizza Delivery – site de Internet www.lancellotti.com.br.

Um comentário:

  1. Que bela história, morro de amores pelos meus companheiros.
    Já perdi alguns em minha caminhada e sei o quanto dói
    quando eles se vão.
    Saudades da Branca, Magrela, Liza...

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