sábado, 21 de agosto de 2010




O encontro de Graciliano com Drummond

* Por Luiz Carlos Monteiro

Graciliano Ramos havia saído da prisão no dia treze de janeiro de 1937. Fora preso sem motivação plausível, talvez pela suspeita de pertencer ao partido comunista ou de ser simpatizante do movimento subterrâneo da esquerda anterior ao Estado Novo. Liberto, após quase um ano de detenção, sem emprego ou renda, Graciliano passou a morar na casa de José Lins do Rego. Na busca de opções para ganhar algum dinheiro, anima-se a participar de um concurso de literatura infanto-juvenil, estimulado pelo pintor Santa Rosa.

Certa tarde, dirige-se ao Ministério da Educação e Saúde, cujo titular era o mineiro Gustavo Capanema, para saber informações sobre o prêmio. O evento acontece e é relatado em etapas, desde a sua chegada ao ministério, interação com o ascensorista, negação e indiferença ao cumprimento do Ministro e, ao fim, o encontro com Drummond:
“Duas horas. O Ministério fica no edifício onde está o cinema Rex. Entrei. Estou tranquilo no elevador, esperando um momento oportuno para perguntar ao ascensorista em que andar devo descer, quando o mesmo se empertiga como um recruta ao receber brado de sentido dado por um sargento valentão. Talvez exagere, bateu os calcanhares. Aprumado, disse obsequioso:
- Boa tarde, Senhor Doutor Ministro. – Não olhei para quem entrava; não conseguia tirar os olhos do ascensorista. Despertava-me maior curiosidade naquele instante. Era o típico mulato carioca, cheio de mesuras e rapapés, magro e desengonçado, vestido de azul-marinho, terno já surrado, mas impecável na limpeza. Usava um estranho bonezinho na cabeça, de tamanho menor que a circunferência do crânio. Ficava meio no cocoruto, como se fosse chapéu colocado na cabeça de um burro. Olhando melhor, vi que parecia um desses bonés de motorneiro de bonde. Com meus botões pensei que o mulato devia ser mesmo militar. O hábito do quépi faz o monge. Queria saber de onde tinha desentranhado o “Senhor Doutor Ministro” e o boné.

Nisto dou de cara com o Ministro Capanema. Mineiro compenetrado, tinha o nariz avantajado (quase de negro) e o beiço caído. Bochechas grandes e flácidas. Reconheceu-me, creio, e esboçou gesto de cordialidade na minha direção. Não posso adivinhar a cara que fiz para a S. Excia., sei que cortei o seu gesto pelo meio. Subimos. Deixei que descesse primeiro e fui até o último andar. A sós com o mulato do boné, perguntei-lhe onde poderia obter informações sobre um concurso infantil do Ministério. Indicou-me o andar, já sentado de volta no seu tamborete. Aliás, nele sentou-se tão logo fechou a aporta nas costas do Senhor Doutor Ministro.

O andar era o mesmo em que tinha descido o Ministro. Pelo visto, deste eu não me escapo. Pensei melhor: ridículo um Ministro de Estado a dar informações.”

Como se pode observar, o escritor Graciliano, na perquirição de tipos sociais, prefere observar o traje e os hábitos do ascensorista, deixando de lado a figura imponente do Ministro. O flagrante imperdível do “mulato carioca”, sem que perceba a indelicadeza que está a cometer, paralisam-no momentaneamente. Ultrapassa a condição civilizada, embora “selvagem”, do homem que era, para se fixar na personagem humilde e pitoresca do mulato, facilitada pela visada do escritor. Cede à compulsão literária em detrimento da vida prática. E, no âmbito profundo da situação, contrapõe o mulato ao Ministro, o negro ao branco, o servidor público modesto ao funcionário do alto escalão getulista. Retorna à própria condição implícita de ex-detento, à realidade viva, chã e deprimente, embora sem jamais esquecer a suspensa e simultânea de escritor. Neste tempo mínimo, em que ocorrem coisas somente vistas a fundo por ele, prepara-se o encontro com Drummond:

“Na saída do elevador deparo-me com um poeta mineiro, que veio para o Rio junto com Capanema para ser o seu auxiliar de gabinete, de quem elogiam o caráter e a poesia. Seu nome escapa-me. Magro e taciturno, tímido e falante ao mesmo tempo, trocamos muitas palavras dentro de uma sucessão de mal-entendidos mútuos. Ele fazia questão de não mencionar a situação passada, escondendo-se por detrás do leitor atento e apreciador dos meus livros. Eu, querendo apenas pedir-lhe informações sobre o edital, retribuía as honras e os elogios literários.

Eram dois escritores que se encontravam à entrada de uma Academia de Letras. Competia a mim acabar com a situação falsa, declarando o motivo da minha presença naquele lugar. Se não o fizesse, na certa pensaria que tinha vindo visitar o Ministro. Nunca se sabe neste país. Escrevendo agora e conhecendo a matreirice dos mineiros, não posso deixar de pensar que Capanema tinha de propósito colocado o auxiliar na porta do elevador, á minha espera. Conhecendo ainda como as coisas da literatura se passam nesta província chamada Rio de Janeiro, tenho a certeza de que alguém – talvez o Zé Lins, ou mesmo o Santa – já tivesse advertido o Ministro da minha intenção em concorrer ao prêmio infantil. De qualquer forma, expressei o motivo de eu estar ali.
De imediato, levou-me a uma sala onde uma senhora velha e gentil deu-me a cópia do edital. Agradeci a ambos e fui rever o amigo de boné de motorneiro. Deixou-me de volta, na entrada do edifício.”

Essa suposta visão de Graciliano sobre Drummond e o Ministro é um tanto crua, seca, ressentida e enviesada, originária de quem havia feito uma viagem no porão de um navio de Alagoas ao Rio de Janeiro, passando pelo Recife, sem falar nos maus momentos atrás das grades da prisão da Ilha Grande, como conta com riqueza de detalhes ficcionais e reais em Memórias do Cárcere. Seu modelo de poeta configurava-se no pernambucano Manuel Bandeira, tanto pela qualidade e pelo tipo de poesia que este escrevia e que o tocava mais de perto, quanto pelo comportamento áspero e fechado de ambos. É difícil de acreditar que Graciliano, no íntimo, fosse indiferente à poesia drummondiana, mas o que os afastava naquela ocasião mostrava-se como a instabilidade de vida prática e temporariamente precária do ex-detento frente à adaptabilidade, presteza e desenvoltura do tímido assessor do Ministro.
Contudo, isso não foi escrito nem contado pelo escritor alagoano. Faz parte de um trecho do livro Em liberdade (1981), do escritor e crítico literário mineiro Silviano Santiago, que imaginou um diário de Graciliano da fase pós-prisão, no espaço temporal exato de 2 meses e 13 dias. Santiago encarnou a pele e certas nuances da escrita do autor de Angústia e construiu uma obra única e antecipatória dos efeitos paródicos do pós-modernismo e do deslocamento de personalidade e transferência da escrita de um escritor em relação ao outro. Nada disto se faz sem empatia, admiração ou identificação com a obra do Outro. Contudo, não há confusão estilística ou imitação pura e simples – a maneira estético-literária de Salviano não se perde na de Graciliano. O crítico mineiro preserva sua forma de escrever ainda quando absorve instantâneos da secura, da contundência e da precisão inconfundível no trato com a palavra do ficcionista alagoano.

Com A Terra dos meninos pelados, Graciliano ganha o prêmio do Ministério da Educação e, no mesmo 1937, inicia sua colaboração de cronista para um jornal de São Paulo, falando sobre assuntos cotidianos, que assolavam o homem comum, sem deixar de noticiar os acontecimentos literários, como lançamentos de novos autores. Posteriormente, ao filiar-se ao Partido Comunista, trava relações mais amistosas com Drummond nos eventos da União Brasileira de Escritores. É possível que tenha apreciado A Rosa do Povo (1945), como um livro que retratava intensamente um período focado na finalização da Segunda Guerra Mundial, no pânico que se espalhava pelo mundo através dos pactos e negociações bélicas. O poeta apontava caminhos e atitudes militantes, reforçava com sua poesia a luta da esquerda no Brasil, através da palavra solidária, indignada e empenhada daqueles anos.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

Um comentário:

  1. Comi gato e lambi os beiços. A perfeição do mimetismo só não engana estudiosos de longa data. É para quem pode.

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