sexta-feira, 27 de agosto de 2010




“Literatura” para mestres e alunos

Por Urariano Mota

A revista “Nova Escola”, do grupo Abril, traz em seu último número um especial sobre Literatura na Escola. Ou melhor, porque são bons de título, “Leitura Literária”. Não resisti à curiosidade de lançar olhos, bons olhos, de preferência sem alhos, aos textos da orientadora revista.


Até que a abertura foi razoável.


“Muito se fala do poder da literatura – e de como a escola é um lugar privilegiado para estimular o gosto pela leitura. Infelizmente, porém, as salas de aula brasileiras estão longe de ser ‘celeiros de leitores’.


Que digo? Já no começo, como avião no desastre, o parágrafo não resiste aos anúncios do que virá. Primeiro porque o poder (língua do pê?) da literatura não se dá pelo estímulo ao “gosto da leitura”. Por favor, mais, muito mais. O gosto da leitura pode ser dado por mil e uma outras maneiras, a começar pelos livrinhos de palavras cruzadas e manuais de redação da editora abril, talvez. Ou será que aí, já nesse ponto, o texto se dirige à literatura, e seu poder, como uma geradora do gosto da leitura, e todos estaremos satisfeitos? Ah, bom, pode ser. Com tal destino, o avião decolou bem, para o inferno. Em segundo lugar, não é bom, nem é humano, transformar as salas de aula em “celeiros de leitores”. Estamos falando de alunos, de pessoas, de gente, não de números de consumidores. Mas pode ser, mais uma vez, que o destino do avião também se dê nesse norte. Apertem o cinto.


“...Mas, obviamente, é possível mudar esse quadro. Esta reportagem especial se propõe a ajudar você com dicas de especialistas e novidades do campo da didática. Para começar, é preciso compreender que, antes de analisar e refletir sobre os aspectos formais da literatura (história, linguagem etc.), os estudantes têm de gostar de ler. E isso só se faz de uma maneira: lendo, lendo, lendo....” (Destaques meus.)


Notem, ninguém aprende a gostar de ler porque foi levado a ler, ler e ler, como um hábito de reflexo pavloviano, ou de adestramento, numa espécie de novo método Kumon, que da matemática passasse a cálculo de romances e contos. Não há baterias de testes para a literatura. Portanto, o caminho não é ler, ler e ler. O caminho, além de se fazer caminhando, se faz pelo despertar de gosto e curiosidades além do livro, que apenas é instrumento de leitura do mundo. “Apenas”, se permitem. A consequência, claro, será gostar da leitura. Mas isso não é um afeto que se adquire pelo exercício. A necessidade do beijo vem antes. Adiante.

“Porém ninguém nasce sabendo...” (Salve.) “...Cabe à escola dar acesso às obras e ensinar os chamados comportamentos leitores: ‘entrar’ na aventura com os personagens, comentar sobre o enredo, buscar textos semelhantes, conhecer mais sobre o autor, trocar indicações literárias. Tudo pelo prazer que a literatura proporciona, de nos levar a outros lugares e épocas”.
Aí, nesse negrito, repete-se uma confusão histórica, um lugar-comum dos mais batidos. O de que a literatura nos leva a outros lugares e épocas. Notem, aí se confundem o factual ao percebido e sentido. Como fato, a Odisseia, por exemplo, se passa nos chamados tempos homéricos. Mas a nossa leitura se dá pela identificação com o destino de Ulisses, esse Odisseu atualizado como um nosso, aqui, agora, em Olinda, no Recife, em São Paulo ou em Caxambu.


Quero e devo dizer, se me permitem uma pretensão filosófica: esse transporte a outro lugar e tempos é como se não se desse,em razão da grandeza da universalidade literária. Mas vamos, não exijamos tanto de uma reportagem que apenas pretende ensinar a gostar de ler. (A esta altura, me pergunto se o redator do texto da revista gosta... )


“Quando lemos um livro de poesias, elas nos emocionam e nos fazem refletir, buscar interpretações possíveis e tirar conclusões. E se alguém contar que essa obra foi escrita durante uma guerra, por exemplo, quando todos os escritores eram perseguidos? Ou chamar a nossa atenção para a estrutura do poema e nos fizer pensar por que o autor usa cada palavra, cada figura de linguagem? Com certeza, nossa visão sobre a obra vai mudar e vamos entender melhor aquele conjunto de versos. É isso que acontece quando você alia o ensino da literatura às práticas de leitura. Os alunos aproveitam a teoria para ampliar o olhar sobre os livros”.


Fundamental desses métodos de “gostar de ler”: nenhum reflexo há da literatura para o mundo e do mundo para a literatura. Nenhuma reflexão sobre a vida mesma, ou sobre a vida mesmo. Aqui, mais uma vez, a literatura não é algo vital, da aventura humana. Mudam-se as burocracias apenas. Em lugar de uma ausência de livros e da literatura de antes, prega-se uma presença pálida, desfibrada, asséptica, desse conhecimento maior da humanidade.


“...Nessa etapa da escolarização, o jovem precisa se acostumar à leitura autônoma. Mas algumas atividades coletivas podem ser mantidas (um bom exemplo é a leitura, pelo professor, de um texto de difícil compreensão, com o objetivo de ajudar na interpretação” .


Lembro do professor Arindo. Que diferença para esse mestre indutor de compreensão de textos da editora Abril! O professor Arlindo escolhia como o público ideal para ouvir Jean-Jacques Rousseau alunos pobres de uma escola pública. “Sobre o prazer de andar a pé”, ele nos revelava. E a partir disso, ele partia para, em bom português, falar do prazer imenso que era descobrir um lugar ermo e secreto para defecar, quando se está em agonia. Depois voltava para o livro de


Marcel Debrot, Le français au gymnase.


Com frequência, muitas vezes repetimos um mesmo texto, pois ele nos mandava ler esse gozo, "Sur la liberté de la conscience". Eram anos de ditadura, sabíamos, e comentava-se, aos murmúrios, que o professor em 1964 havia sido espancado, preso, porque fazia parte da direção do Serviço Social contra o Mocambo. O texto no livro de Marcel Debrot vinha sempre a calhar, e era em estado de êxtase que o mestre nos fazia ler "Sobre a liberdade da consciência".
- Vejam a beleza. Repitam essa frase. O título é uma coisa extraordinária – silabava em ritmo lento – sobre a liberdade da consciência.


Mas perdão, voltemos ao texto da revista Nova Escola.
“...Na hora de ajudar a turma a escolher os livros, é importante conhecer o repertório e os interesses dos estudantes (coisas que cada um curte fazer nos fins de semana, assuntos que lhes interessam). Com base nisso, fica mais fácil sugerir leituras que farão sucesso. Segundo Rildo Cosson, autor de Letramento Literário: Teoria e Prática, indicar uma obra que dialogue com um jogo de videogame é um meio poderoso de atrair a garotada para a história. Além disso, a consolidação dos hábitos de leitura permite explorar textos mais difíceis e desafiadores, bem como conhecer novos autores e estilos”


Precisa dizer que se busca o despertar pelo fácil, mais fácil, ou por apelos facilitadores, alheios à literatura mesma, como se ela fosse algo de ruim, de péssimo, que não sobrevivesse sem os recursos moderníssimos do lazer? Nesse passo, quando professores e alunos chegarão a Cruz e Sousa? Será quando falarem do street fighter Negro, o very Black? E Camões, quando terá a sua hora? Sim, o Camões da Lírica, de versos e sonetos imortais, que todo jovem sensível, como todo jovem, deveria conhecer, quando o conhecerão? Será quando falarem do naufrágio do Titanic, para daí fazerem um link com o poeta que perdeu tudo, menos os Lusíadas?


Então chegamos aos erros mais comuns, cometidos pelos mestres em sua prática de boa leitura. Entre tantos, a revista destaca:
“Muitos professores brasileiros não tiveram a chance de construir uma história como leitores de literatura. Mas sempre é tempo de criar o hábito de leitura e também inspirar seus alunos. Você terminou de ler um romance. Chega à escola e corre para compartilhar a experiência com os colegas. Fala sobre os conflitos do personagem (sem entregar o fim da história, é claro)”


Aqui, acima, vai a visão da literatura pelo enredo, pela trama. Mas
“Para os adultos que estão se iniciando no mundo da literatura, perceber as relações entre os livros e outras linguagens é também um caminho interessante. Ver um filme, ouvir uma música ou assistir a uma peça de teatro baseados em obras literárias e depois ler o texto original - ou vice-versa – é ótimo para entender como uma história é contada de maneiras diferentes.”
Mais uma vez busca-se a literatura como um purgante, que tem que ser referenciada a gêneros mais... atraentes. Massivos e de facílima digestão, deve-se dizer.
“Muita gente diz que o bom leitor é aquele que lê os grandes clássicos da literatura. Bobagem. Um leitor competente lê de tudo e passeia por gêneros variados, trilhando o próprio percurso. ‘Como diz o poeta brasileiro José Paulo Paes, devemos ler desde pornografia até metafísica’, argumenta Heloisa Ramos, especialista em Língua Portuguesa e formadora do projeto Letras de Luz, da Fundação Victor Civita (FVC)”.


A visão dos clássicos como algo indigesto, porque “Os best-sellers, por exemplo, recorrem a padrões narrativos simples e trazem certo conforto. ‘É por isso que tanta gente gosta dessas obras’, afirma Celinha Nascimento, mestre em Literatura Brasileira e assessora de escolas públicas e particulares”. Mas os best-sellers não são best-sellers exatamente por serem simples. Eles se vendem bem por outro motivo: atacam problemas específicos, visíveis, urgentes. Como só têm marketing, atacam e não fodem. Assaltam e ficam na superfície. Mas eles são vendidos porque acenam com problemas visíveis. Algo como “Fui corno e achei uma delícia” no título. Ou “Como conquistar a mulher do próximo”. (Sinto que estou dando excelentes sugestões para os próximos lançamentos.) Nem passa pelas cabeças das autoridades em leitura que um Best pode ser Best na complexidade e no destino de milhões de pessoas. Duvidam? Que dizer das obras de García Márquez, e mais precisamente de “Cem anos de solidão”? Que dizer do poeta brasileiro mais lido até hoje, Augusto dos Anjos? Eles escrevem fácil e simples?

Boas leituras! Diz o texto ao fim. Se o estrago pedagógico da revista Nova Escola fosse pequeno, até que não deveríamos ter qualquer preocupação com tais ensinamentos. o estrago é grande, haja vista as dispensas de licitação que o governo de São Paulo tem feito para a compra da revista, conforme pode ser visto aqui
http://www.observatoriodaeducacao.org.br/index.php?view=article&id=685%3Ana-compra-da-revista-nova-escola-argumentos-para-dispensa-de-licitacao-sao-questionaveis&option=com_content&Itemid=98 :

“Em 1/10/2008, a FDE, que é vinculada ao governo estadual (do estado de São Paulo), firmou contrato com a Fundação Victor Civita, vinculada à Editora Abril, no valor de R$ 3,74 milhões para a aquisição. Não houve licitação. “


Pobres professores sem alternativa. Mais pobres alunos. Miserável literatura recebem, por fim.

• Escritor e jornalista

3 comentários:

  1. Sempre gostei de ler, às vezes me escondia num canto
    para seguir viagem na leitura.
    Quando a Literatura se tornou obrigatória nas escolas
    não tive grandes dificuldades, depois de um tempo
    antipatizei com a leitura extra curricular e com a professora que ao ser questionada sobre outras histórias
    ou até mesmo sobre o autor, mandava a gente pesquisar.
    O bom leitor se doa para qualquer tipo de leitura.

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  2. Correção:

    no antepenúltimo parágrafo, terceira linha,
    na frase "preocupação com tais ensinamentos. o estrago é grande, haja vista", depois do ponto em "ensinamentos", faltou a adversativa "Mas".

    Culpa do texto mal configurado que enviei a Pedro. Culpa minha, vale dizer.

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  3. Quando a pessoa precisa de muitos discursos para ser convencida a ler, quando necessita ouvir que ler é agradável, que é viagem, e blá,blá, blá, não creio estar diante de um futuro leitor que embarcará em viagem própria. Quando muito, será alguém que vá cumprir certos rituais para não perder a vez. Quando ler não é mostrado como necessidade/obrigação, passa a ser melhor visto. A característica individual é o mais importante, seguido do ambiente de leitura em que o livro é peça chave. Aos três anos ouvia a minha mãe ler revistas em quadrinhos todos os dias. Ela apontava os balões e a diversão era tão grande e o prazer tão imenso que eu virei isso daqui: tirem as letras da minha frente, senão não paro de ler.

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