O passado e nada mais
*
Por Anna Lee
Ele está diante de mim. Mas
não estamos no passado. Um encontro que se realiza com dez anos de
atraso. Mesmo assim, tento voltar no tempo. Acho que devo isso a nós,
não a ele, não a mim. Esforço-me. Agarro-me aos resquícios.
Volta e meia, ele ajeita os
óculos numa ansiedade nervosa (uma redundância proposital e
necessária), que persistiu. Ele também permaneceu fiel à barba,
que está esbranquiçada. Uma questão de princípios. “Os homens
que usam barba parecem mais dignos”. E eu concordava somente porque
gostava de deslizar meus dedos por entre os fios. Não gosto mais.
Existe nele tanta coisa em
desordem. Uma desordem que talvez seja minha e, por isso, me obriga
ao esforço de experimentar o passado no presente. Se bem que é mais
fácil suportar a dor de um tempo que não é o agora. Isso é uma
vantagem. Porém, ao passado só é possível ir com o olhar de hoje.
E, hoje, o passado – o nosso passado – não faz sentido. A dor é
outra e profunda. Olho-o e me pergunto: Por que devo perdoá-lo? Não
é uma questão de dever, mas de não quer.
Uma noite em Florença.
Eu chegara na estação Santa
Maria Novella no fim do dia. Vinha de Roma. Durante a viagem de trem,
tentara me distrair pensando nos cidadãos ilustres que haviam
nascido naquele pedaço da Toscana: Michelangelo, Dante e Maquiavel.
Uma forma de esquecer e ao mesmo tempo justificar a despropósito
que, então, cometia.
Marcamos um
encontro na Piazza
del Duomo – uma obviedade que tinha a função de tornar aquela
situação banal, como se algo em Florença, cheia de arte e passado,
pudesse ser banal. Pelo menos o lugar tinha a conveniência de estar
a menos de cinco minutos a pé do hotel, que, por sua vez, ficava a
500 metros da estação de trem.
A noite é fria. Há luz da
lua sobre o rio Arno. Ele chega e me abraça. Abraço morno e
demorado. Baixinho, no meu ouvido, repete o que dissera quando me
comunicou que no dia seguinte deixaria o Rio, passaria dois ou três
meses em São Paulo e, então, partiria para a Itália: “Não
há futuro possível para nós”.
Ainda houve uma noite. E
nenhuma outra palavra. No dia seguinte, às seis da manhã, eu já
estava na estação Santa Maria. O frio era ainda mais intenso.
Um espaço de dez anos.
O telefone
toca e ele me diz que está num Ritz
plantado no Leblon. Quer me ver. Eu não quero, mas vou mesmo assim.
Não há mais o frio de Florença. No lugar da lua sobre o Arno, há
o sol da tarde
que bate nas ondas e tornava o mar do Rio mais bonito, um animal
imenso coberto de escamas douradas. E há o passado e nada mais.
*Jornalista, mestranda em
Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O
Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre
outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e
nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.
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