Mané,
saudoso Mané
*
Por Marcelo Sguassábia
Lembro
como se fosse hoje que passava um pouco de cinco e quinze da matina
quando ele me ligou dizendo que tinha despertado com o lampejo,
transformado em ideia tentadora, que logo virou desejo irrefreável
de dar cabo de uma vez da sua vidinha sem atrativo. Queria ir pra
junto do Flávio Cavalcanti, do Santos Dumont, do Jack Estripador, do
Mussum e de todos os outros grandes que já tinham ido. Não via mais
sentido em continuar ocupando seu invólucro castigado e tão sem
atrativo, ainda mais vendo tanta gente melhor que ele abandonando
precocemente o posto nesse ingrato campo de provas.
Dizia
o Mané:
“Trabalho
numa máquina de moer carne, minha mulher há muito deixou de exercer
qualquer influência na minha libido e eu acho um saco fazer a barba
todo dia. Isso sem falar das pombas que só aliviam sua diarreia no
capô do meu carro, do jeito azedo do vizinho e da inesperada
cobrança complementar do IPTU, referente ao puxadinho que construí
sem autorização da prefeitura e que acabou virando depósito para
as tralhas de pesca do Lourencinho, primo desgraçado que ronca, fuça
e é perito em aparecer de supetão pra filar a janta.
Já
falei pra mim mesmo: olha pra trás, meninão. Conta até dez, chupa
um halls daquele trinca guela. Nada como um halls extra forte bem
chupado, se possível acompanhado de água geladíssima por cima, pra
nos demover de decisões irrefletidas. Isso já dizia Danny
F.Chesterfield, aliás com propriedade rara entre seus
contemporâneos. O bom e velho Danny, idólatra da TV dos tempos em
que domingo de manhã passava o programa do pastor Rex Humbard,
“Imagens do Japão” e o “Caravela da Saudade”, que com seus
fados levava aos prantos 9 em cada 10 donos de padaria no Canindé.
Estou
aqui com o epitáfio prontinho. Está pronto em linhas gerais, ainda
falta um acerto ou outro de ortografia e de colocação de vírgula.
As seis alças do caixão já têm dono, e evidentemente você é um
dos escalados. Pega numa perto do pé que o esforço é mais leve, a
região da barriga deixo para uns parentes que tenho em baixíssima
estima. Que eles sirvam pelo menos pra isso, já que nunca me
emprestaram um tostão quando a lavanderia estava mal das pernas.
Está tudo esquematizado, fiz um croqui em papel vegetal com as
alças, puxando umas setinhas com o nome de cada um. Deixei na gaveta
do criado-mudo, junto com umas outras orientações e providências
que devem ser tomadas”.
Ameacei
desligar o telefone, nauseado com tanta morbidez, mas ele dizia que
ficaria na minha consciência se morresse de mal comigo. E
continuava:
“Agora
o que tá pegando é o jeito de liquidar a fatura. Estou aqui na cama
caraminholando qual a modalidade mais prática e menos ortodoxa. Nada
de ligar o gás, enforcamento na jabuticabeira, deitar na linha do
trem, Ginsu na jugular ou lexotan com soda cáustica. Pensei em
injeção de ar na veia, o modus operandi predileto dos nazistas no
holocausto, o que me diz?”
Foi
quando caiu a ligação, depois aconteceu o que todo mundo já sabe.
A famosa reviravolta que o fez viver lúcido e sacudido até os 94, à
frente do grupo de empresas que até hoje leva o seu nome.
*
Marcelo
Sguassábia é redator publicitário. Blogs:
WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e
WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Saravá! Assunto mórbido tratado com graça e maestria.Especialmente pelo final feliz.
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