Sorvendo os ânimos
*
Por Laís de Castro
Ninguém
sabe o que é desvio de estrada-de-ferro. Desvio é aquela linha
auxiliar que as ferrovias têm em todas as estações, onde alguns
vagões, ou muitos, ou o trem inteiro fica esperando a hora de seguir
o seu destino. Uns ficam vazios como a minha cabeça neste momento,
outros com mercadorias não perecíveis como a sua cabeça neste
momento, uns ficam com meia carga, esperando lotar para seguir em
frente. E às vezes demora, muita gente fica no desvio boa parte do
tempo que lhes é dado neste mundo. Vagões, como pessoas, só seguem
viagem quando estão com sua carga máxima. Fica aquela meia carga
picotando a vida, como o guarda-trem picota o bilhete para mostrar
que foi usado, não vale mais nada, até gente jogar tudo para cima e
ir em frente com a carga pela metade mesmo. Meia-bomba.
De
repente, você está num trem indo para um lado e cruza com outro
voltando e quantas pessoas podem estar naquele que poderiam ser suas
amigas, companheiras, maridos, mulheres, gurus, guardiões,
assassinos, algozes. Pode pintar, no cruzamento, um desencontro,
desandando sua vida como maionese, espalhando laivos de pavor, mágoa
e desatino. Ninguém mais terá licença, pronto, para pensar coisas
simples sem machucar-se ou deprimir-se em guerras estelares, porque
os trens se cruzaram, separando quem deveria estar unido, destruindo
as intenções interpessoais de amor, de paz e de guerra, de nascente
e nascimento. De poente, na praia, a dois, a dor da separação, do
desaparto.
A
indiferença e a paixão se desencontraram. Funciona assim: uma das
chaves que comanda os trilhos envia a um desvio onde o trem deve
encostar, parar, estancar, deixar de buscar seu destino e a outra
chave envia à linha-mãe, de onde ele parte para o definitivo,
lotação esgotada de sentimentos. Deslizando em suas bases de aço,
quase sem atrito, a sensibilidade se deixa levar para longe e onde
quer que seja, vai se apresentar escudada em centenas de anos de
experiência das emoções humanas, que se repetem. Melhores, ou
piores, estarão em cada cabeça e em cada consciência, sem
preconceito de cor, de idade, de sexo, religião ou qualquer outra
diferença externa que os olhos enxerguem, mas o coração não.
Estarão em cada farol verde que dá passagem ao trem, com sua
respiração ofegante, eu te cutuco, num cutuca, eu te cutuco, num
cutuca, eu te cutuco, num cutuca. O trem não escolhe passageiros
assim como o coração não escolhe, cerra os olhos antes de atirar a
flecha de cupido que sangra caçador e vítima.
Quem
sabe a paixão possa se abrir como um Sésamo, mostrando todo o seu
interior ou talvez se mantenha fechada como um cofre, apenas porque
tem licença dos deuses incógnitos para envolver você e o outro no
casulo, ou prender na teia de aranha, sufocar como uma asma
fulminante, roubar espaço que seria do oxigênio e preenchê-lo com
taças mórbidas de curare e vinho tinto. Depende de sua capacidade
de fixação, eu sou bacana, nada me atinge, conversa mole, fiada. Em
dezenas de gêneros de pressentimentos e comoções, desde aqueles
que estacionam num desvio até os que voam baixo, sobre um colchão
de ar, comoções modernas embarcadas numa estação inicial
recusando-se a parar antes de atingir seu fim. Ruim ou bom. Uma
mordida de um cão furioso num dia, um afago de um gato manhoso no
outro.
Notícia
de rádio: “Os trens estão a 30 segundos de uma colisão frontal e
ninguém poderá evitar o desastre”.
A
escassez remete ao pensamento delirante. Um só peito pode conter
milhares de fórmulas de encontros e sabores, do ácido ao doce, do
amargor da crueldade ou do sorvedouro de ânimos humanos. Como num
trem. No início da viagem há uma permanente esperança da chegada,
mas depois de um milhão de quilômetros percorridos, o cabelo do
guarda-trem mais branco, as roupas puídas e amarrotadas, os vagões
desbotados pelo sol, o olhar mais brando, o cardápio retornado do
carro-restaurante, a releitura da mesma velha revista, a rotina da
viagem e da vida parecem murchar, como a flor que se enterra com o
corpo morto.
Na
essência, toda decolagem anseia um pouso, toda partida uma chegada,
todo começo um fim, toda ação desentoca uma reação, como a
raposa desentoca o coelho. Um círculo vicioso vale o mesmo que um
olhar distante, quando a noite chega, qualquer delírio pode entrar
em órbita. Da semente lançada ao espaço, nascem milhares de azuis,
verdes e dourados. Qualquer semelhança nunca é mera coincidência,
se o desvio de rota não for suficientemente explicado. Qualquer data
pode traduzir o ódio perpassado numa morte inútil e na triste
verdade, que sempre vêm à tona, feito azeite em água.
Onde
quer que seu trem tenha parado, para onde quer que ele voe em
velocidade vertiginosa, hoje, você não vai receber nenhuma
mensagem, não vai sentir nenhum arrepio e nem ter qualquer
premonição. Onde quer que você esteja, não será encontrado.
Um
leilão de lástimas pode ser efetivo caso a vida não tenha mais
sentido e um telefonema ganhe o direito de desligar o último ser
humano de seu último interlocutor.
A
colisão dos trens acontece neste exato momento.
*
Jornalista, trabalhou no grupo Abril, na Editora Três (sob Luís
Carta), na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da
Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um
velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.
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