Isso se aprende no colégio?
Muito
oportuna, pertinente e, sobretudo inteligente a coluna de Urariano
Mota, publicada, se não me engano em 2011 (aliás, como tudo o que
esse artista do texto escreve) em que aborda um tema original (como
sempre), algo que começa a virar moda entre nós, e que tende a
trazer desgostos e frustrações futuras aos incautos que venham a
cair nesse logro: as tais Escolas de Escritores. Pouca coisa, na
verdade nada, tenho a acrescentar a esse texto, que me suscita
inúmeras reflexões, algumas das quais peço licença para partilhar
com vocês.
Penso,
em relação à literatura (e a experiência de anos de janela me
comprova que estou certo) o que Noel Rosa, por exemplo, pensava em
relação ao samba: “não se aprende no colégio”. O imortal
compositor carioca deixou isso expresso com singeleza, mas com
clareza, nessa peça marcante e única do cancioneiro popular
brasileiro (tão rico e fantástico) que é “Feitio de oração”.
Em determinado trecho da letra, ele afirma peremptoriamente:
“Batuque
é um privilégio
ninguém
aprende samba no colégio...”.
Bem,
literatura, no que se refere à teoria, à análise crítica, à sua
história etc., se aprende, na verdade, nas escolas. Isso é um fato.
Mas há quem consiga a “mágica” de tornar alguém, com meia
dúzia de aulas (ou até com um milhão delas), um escritor, na
lídima expressão do termo? Duvido! A exemplo de samba, isso também
não se aprende no colégio. Só tem uma escola que “talvez” (e
notem bem, que coloquei essa palavra de propósito entre aspas, por
não se tratar de nenhuma certeza) possa funcionar: a da vida.
Nem
todo o sujeito que se vale da palavra escrita para expressar ideias,
emoções e sentimentos, ou afetos e desafetos, ou desespero e
esperança ou etc.etc.etc. é, rigorosamente, escritor. Pode até
escrever bons livros, e em profusão, tornar-se, num piscar de olhos,
best-seller, e ainda assim não poder ostentar com legitimidade essa
condição. Jamais será um Balzac, um Baudelaire, um Hugo, um
Dostoievski, um Machado de Assis ou tantos e tantos e tantos outros
gênios das letras.
Se
não tiver aquela chama interior, indefinível, mas concreta; se não
tiver paixão pelo que faz; se não for sincero e verdadeiro,
sobretudo consigo mesmo, pode ser até redator de primeiríssima
qualidade, jornalista de múltiplos recursos, economista, filósofo,
filólogo ou os diabo a quatro de extrema perícia, mas jamais será
um escritor.
O
leitor contumaz (não me refiro àquele ocasional, que apenas de vez
em quando leia um jornal, revista ou livro, mas ao que faz da leitura
algo essencial como comer, beber, andar, dormir, respirar...), sabe
muito bem fazer essa distinção. Fá-la não com o intelecto (que
muitas vezes nos prega peças enormes), mas com a alma, com a
sensibilidade e com a emoção.
Arrepia-me
toda a vez que um guri, cheio de empáfia, me apresenta seus textos
(não raro canhestros e eivados de lugares-comuns) para apreciação,
amiúde acompanhados da afirmação “gosto muito de escrever”.
Ocorre que o escritor (o que é de fato e de direito) não escreve
por gosto (ou não só por ele), mas por necessidade. A escrita, para
ele (ou ela, claro) é uma válvula de escape, uma descompressão dos
sentidos e da alma, um exercício de exorcismo dos seus demônios
interiores. Há muitos que, sequer, gostam de escrever.
“Mas
como?!!!”, perguntará, atônito, aquele que tem ideia
estereotipada (e por isso equivocada) a propósito dessa atividade.
Pois é, a escrita, no fundo, no fundo, não é um prazer, mas uma
obrigação que às vezes temos que cumprir para conservar um mínimo
de sanidade mental.
Li,
há cerca de meio século, uma crônica, da escritora cearense (e
esta sempre mereceu, de fato e de direito, esta designação) Rachel
de Queiroz, na extinta revista “O Cruzeiro”, em que essa ilustre
membro da Academia Brasileira de Letras confessava que “não
gostava de escrever”. Isso mesmo, sem tirar e nem pôr. Afirmou que
escrevia para se “livrar” de determinados livros que ficavam lhe
piscando na cabeça, como um anúncio de néon, até que viessem à
luz.
Também
sou assim. Escrevo para “livrar-me” dos meus fantasmas, das
minhas memórias, das minhas angústias e demônios interiores. E
alguém, em sã consciência, sob pena de cair em ridículo e no mais
absoluto descrédito ousaria dizer que Rachel não era escritora, e
das melhores que nossa literatura já produziu? Claro que não! Nem o
mais tolo, alienado e estúpido dos indivíduos teria tamanha
ousadia.
Ainda
a esse propósito, li, há já algum tempo, o discurso de posse na
Academia Paulista de Letras (muito antes de ser eleita, também, para
a augusta ABL) da escritora Lygia Fagundes Telles em que ela, em
determinado trecho, confessava que tinha “medo de escrever”. “Mas
como?!!!”, tornará a perguntar o mesmo sujeito atônito que fez o
questionamento de dúvida sobre o fato de haver escritor que não
goste de escrever (e a maioria dos que conheço me confidenciou que
não gosta mesmo).
Também
tenho esse temor. Nos textos, desnudo-me por completo, exponho o que
sou e o que penso, mas sempre receoso sobre o que os que me lerem
irão achar. Esse, aliás, era o “medo” a que Lygia se referia.
Nunca sabemos o destino da palavra escrita, em que mãos nosso texto
irá parar e, por consequência, o que essa pessoa irá pensar de
nós.
Urariano
ressaltou dois aspectos do escritor ao qual raramente atentamos, mas
presentes em todos eles, variando, apenas, em intensidade: masoquismo
e vaidade. No primeiro caso, Vinícius, o querido poetinha,
popularizou essa verdade na letra da canção “Eu não existo sem
você”, que compôs com o saudoso maestro Antonio Carlos Jobim, o
querido Tom.
Em
determinado trecho dessa composição, ele diz:
“Assim
como o oceano só é belo com o luar,
assim
como a canção só tem razão se se cantar,
assim
como uma nuvem só acontece se chover,
ASSIM
COMO O POETA SÓ É GRANDE SE SOFRER....”
E
não é?! Poeta esbanjando felicidade consegue emplacar sua obra e
sensibilizar alguém? Pode até expressá-la, mas apenas para
valorizá-la, após deixar que ela escape por entre os dedos.
Agora
eu pergunto: alguma escola do mundo é capaz de ensinar essas coisas
(exceto a da vida, logicamente)? Quem seria (ou quais seriam) tal
mestre? O que o qualificaria a ensinar jovens ingênuos e iludidos a
serem escritores? Por que? Afinal, isso sequer é considerado
profissão! Pode render prestígio, mas menor, por exemplo, do que o
de um jogador de futebol ou o de um ator de novela. Dinheiro?
Raramente ganhamos algum que compense o esforço (e os riscos).
Alguém ensina isso aos que querem “aprender” a ser escritores?
E, ao se diplomarem, se não tiverem o verdadeiro estofo de homens de
letras, como serão suas obras? Profundas ou superficiais? Originais
ou eivadas de lugares-comuns? Permanentes ou transitórias?
Carlos
Drummond de Andrade escreveu, certa vez, em uma das crônicas que
publicava regularmente na sua coluna do “Jornal da Tarde”, de São
Paulo: “As obras-primas devem ter sido geradas por acaso; a
produção voluntária não vai além da mediocridade”. Esses
projetos de escritores aprenderiam esta lição dos seus “mestres”?
Acreditariam nisso ou poriam em dúvida? Dificilmente. Isso tudo só
a sensibilidade, a experiência, a autocrítica e, sobretudo a vida,
ensinam. Escola de escritores, ora, ora…
Boa
leitura!
O
Editor.
Nem sei o que é preciso para ser escritor, porém suponho que fazer a obra certa, vista pela pessoa certa, que a credencie, pode mudar tudo.
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